Não foi há tanto tempo assim que me cruzei com os livros de Irene Lisboa, e ainda não os li em considerável quantidade, mas o que já li é-me suficiente para estranhar a relutância do público em lê-la. Poderia dizer que o nosso público é ignorante e reaccionário, mas se calhar é melhor não dizer, podem levar-me a mal.
A verdade é que Irene Lisboa, cujo primeiro livro (Excluindo um pequeno livrinho de contos infantis em 1926.) vem a lume em 1937, sob o pseudónimo de João Falco. Na altura, autores como José Régio, Alberto de Serpa ou Vitorino Nemésio estavam também a publicar as suas primeiras obras. A poesia de Florbela Espanca era já apreciada, mas, a meu ver, num "grupo" que lhe era inferior, e que era, como é hábito sexista, a poesia feminina. O exemplo de Virgínia Vitorino é citado por José Gomes Ferreira a propósito deste assunto, e é certo que haverá mais a dizer sobre esta senhora do que aparenta, a verdade é que ainda se insere num certo tipo de poesia escrita por mulheres que faz louvor aos homens, e da qual só à custa de uma considerável depressão (Digo eu.) Florbela Espanca escapou através de um sofrimento e de uma revolta memoráveis.
No entanto, Irene Lisboa parece-me estar acima de tudo isto. Aqui, a utilização de um pseudónimo masculino actua em dois sentidos: se por um lado ele mascara um nome feminino que poderia ser acusado de subversão, por outro também distancia o autor desse universo de louvor do macho, ainda que o livro leve como subtítulo "Diário de Uma Mulher" e esteja escrito numa primeira pessoa feminina.
Se a partir de Natália Correia, do Poesia 61 com Luiza Neto Jorge, Fiama e Maria Teresa Horta, e nos anos 80 Isabel de Sá, já vimos em definitivo que uma mulher é capaz de uma poesia equiparável (Ou superante?) à dos homens, nos anos 30, mais do que agora, a escrito dos homens é que era a sério.
A injustiça do caso Irene Lisboa parece-me muito óbvia quando se lê os livros pelos livros, e não pelo sexo dos autores, porque, em muitos aspectos, a escrita de Irene Lisboa não é só mais moderna do que a das mulheres do seu tempo, é-o também em relação à de muitos dos homens. Sem retirar crédito a Régio ou a Sena ou a Casais Monteiro, a verdade é que Irene Lisboa soube ver e escrever as coisas de uma forma muito menos dependente do tempo e do contexto em que se insere. A utilização do verso livre e da métrica irregular é só um exemplo.
"Um Dia e Outro Dia" é o primeiro de dois livros de poesia que Irene publicaria em vida, com excepção das folhas volantes e das revistas da Seara Nova.
No entanto, uma análise aos livros seguintes em prosa, como seja a famosa "Solidão" mostram-nos que, mais do que dividir a escrita em poesia e prosa, Irene Lisboa teve a preocupação de narrar a vida, aquilo que é humano e comum a todos nós. Daí que os seus livros, mais de setenta anos depois, não estejam ainda ultrapassados ou sequer datados (A não ser por algumas questões de pontuação ou de algumas palavras entretanto caídas em desuso.).
O livro divide-se em quatro partes, uma primeira sem título em que o primeiro poema se chama "Um dia" e os restantes "Outro dia"; a segunda, "Dias soltos", com algumas indicações de mês; "Mais Dias Soltos", primeiro poema "Outono. Um Dia" e os restantes "Outro dia"; e a quarta "Últimas, Rápidas Notas", primeiro poema "Mais Um dia" e os restantes "Outro Dia".
Parecendo este levantemento de títulos um tanto obsoleto, a verdade é que ele é importante, uma vez que o livro é escrito com o propósito de ser um diário, noção que inova através da utilização do verso e através da não-indicação dos dias, dando apenas uma ou outra nota temporal muito vaga. Isto, não só reforça a ideia de um "documento humano", expressão que muitas vezes vemos associada à obra de Irene Lisboa, como também vai de encontro ao poema de abertura, que termina dizendo
"Como poderá um diário
deixar de ser monótono,
corrente
e vulgar?"
pondo em causa a importância da indicação de um dia como elemento de definição de uma coisa. A verdade é que indicação de um dia, mês e ano não acrescentaria nada aos poemas, porque o que lemos são fragmentos da vida da autora, quer presentes, quer de memória, e aos quais o dia seria uma nota praticamente inútil.
Além disto, ao ler os poemas, percebemos que parte do espírito e da escrita de Irene é uma ironia subtil mas assumida. E portanto, apesar de nos apresentar um livro de poesia/diário com setenta poemas, começa logo por dizer que o formato diário será "monótono, corrente e vulgar".
Claro que, nesses setenta poemas, que a autora define como pensamentos sem forma e sem arte, percebemos que ela atinge aquilo que muitos "poetas" cheios de forma e arte não atinge, que é a capacidade de transmitir uma coisa tão humana como a pele, uma imagem pura da vida, sem artifícios, quer de representação quer de linguagem.
Aquilo que Irene Lisboa nos deixa em "Um Dia e Outro Dia" é, parece-me, uma prequela para os seus livros seguintes, tanto "Outono Havias de Vir" (1937) de poesia, como "Solidão" (1939), prosa. Mas, para todos os efeitos, o que nos lega, é um relato daquilo que faz parte de cada um de nós, daí me parecer apropriada a expressão "documento humano", que implica uma personalidade sem pretensões e incorruptível, como a obra de Irene nos mostra que ela foi. O preço pela originalidade e pela invulgaridade, pagou-o a autora durante a sua vida, e parece-me que continua a pagá-lo a sua obra.Se até aos anos 90 havia a desculpa de que a obra de Irene Lisboa estava esgotada e inacessível, a verdade é que a Presença lançou uma colecção com os livros que Irene publicou (Ficam, por enquanto, de fora os dispersos.)
E acho muito mau que essas edições não estejam já esgotadas.
4 comentários:
Mas que análise mais aprofundada. Parabéns.
És um Arquitecto das Letras ou das "malhas". Bom, já estou a ver projectos teus futuristas para bibliotecas. Lugares vivos e cheios de caligrafia de escritores pelas paredes...
sim. e uma foto enorme da Irene Lisboa logo à entrada para mostrar a esse povo como é ignorante. E quem diz a Irene Lisboa diz outros e outras.
Será que me pode por favor explicar por que razão Irene Lisboa não usou o travessão nos diálogos de "Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma"?
Há alguma explicação para o facto?
Saiba que lhe fico desde já muito grata.
Cumprimentos,
M. Chaves
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