(Parte 1: ler aqui)
O
percurso dos Anathema tem sido de alguma forma discreto no contexto do
rock dos últimos anos, mas o seu estatuto de banda de
culto dever-se-à, entre outros aspectos, ao facto de terem
atravessado de forma exemplar uma espécie de progresso que outras
bandas não tiveram a capacidade de fazer. Dificilmente com
'Serenades', o primeiro EP da banda, lançado em 1993, se poderia
prever que os Anathema estariam, dez anos depois, a gravar um álbum
como 'A Natural Disaster'. O início da banda dos irmãos Cavanagh
está no doom-metal, ainda com Darren White como vocalista. Quando
este abandona o projecto, os Anathema desviam-se cada vez mais no
sentido de um rock progressivo que se vai tornando mais polido e
complexo, definido por mutações constantes que, conquanto sejam por
vezes arriscadas (e o mais recente 'Distant Satellites' é prova
disso), também têm afirmado a banda como um projecto
verdadeiramente amplo e variado. Os Anathema parecem ter-se deparado
com a adversidade de começar a trabalhar a partir de um extremo. A
transfiguração parece ter sido a saída mais inteligente para a
banda.
Os
Anathema podem não ser a banda mais comum de referir para músicos
que fazem percursos de alguma forma semelhantes (os Opeth seriam uma
referência mais usual), mas, perante precisamente alguns projectos
mais recentes, percebemos que os Anathema permitiram a uma série de
músicos uma aprendizagem sobre como resolver criativamente o
problema de se ficar preso num extremo do espectro musical e
emocional.
É
de certa forma o caso dos finlandeses The Chant. O colectivo formado
por Ilpo Paasela (voz), Jussi Hämäläinen (voz, guitarra), Mari
Jämbäck (piano e teclados), Kimmo Tukiainen (guitarra), Markus
Forsström (baixo), Roope Siven (bateria) e Pekka Loponen (voz,
guitarra) lançou em 2008 o primeiro EP, 'Ghostlines' e, desde então,
três álbuns: 'This is the world we know' (2010), 'A Healing place'
(2012) e 'New Haven' (2014).
É
verdade que no EP ouvimos pouco mais que uma banda a
experimentar(-se), mas nos dois anos que passaram até ao primeiro álbum, os The Chant parecem ter encontrado um terreno
sólido para se expressarem. A capa de 'This is the world we know'
talvez explique exactamente aquilo que esse álbum parece
representar: um rapaz pendurado numa vedação olha fixamente para um
ponto que está fora do campo de visão. Esse encontrar de alguma
coisa definida é o que marca a diferença entre 'Ghostlines' e 'This
is the world we know'. A música dos The Chant, e particularmente nos
seus melhores momentos (Armoured man, November 1983, Will you
follow, Safe world, Reflected) tinha
uma solidez definitiva, havia nela algo de muito negro e muito
pesado, contraposto por uma espécie de aproximação de uma redenção
(dizia-se na letra de Will you follow: treasure is the
light bearer/ speaking without words to me,/ now is the moment for
courage) . Essa solidez não
passava ao lado de algumas lições tiradas de bandas como os A
Perfect Circle, os Katatonia e da fase 'Alternative 4' –
'Judgement' dos Anathema.
O
problema com 'This is the world we know' era no entanto o extremo a
que parecia ir, dentro daquilo que era o seu universo. O que era
angustiado e sem esperança no primeiro álbum teve então
necessidade de efectivamente dar esse passo em direcção à redenção
prometida. E é isso que marca o segundo álbum, 'A healing place'. O
título é, aliás, auto-explicativo. As canções eram, até certo
ponto, mais directas e mais intensas ao encarar uma espécie de mundo
doente (Outlines, Riverbed, The black corner),
mas que passava também por uma espécie de compreensão profunda
desse mesmo mundo. Adoecer e convalescer: eis o que acontecia do primeiro para o segundo álbum dos The Chant. A esperança vinha desse estado em que a doença ainda está presente mas prestes a desaparecer. As composições melódicas e meditativas, que
desenvolviam aquilo que no primeiro álbum era mais prototípico,
reforçavam precisamente essa ideia. 'A healing place' tinha mesmo
alguma coisa de terapêutico e de fascinante, mesmo quando soava mais
desesperante (o caso de Outlines
sendo o mais extremo de todos).
Com
o terceiro álbum, os The Chant parecem ter chegado à possibilidade
de sintetizar as duas vertentes que experimentara primeiro em
separado. 'New haven', lançado há pouco mais de um mês, é uma
espécie de fusão entre o rock pesado e cabisbaixo de 'This is the
world we know' e o lado mais experimental e intimista de 'A healing
place'. Mas 'New haven' é realmente qualquer coisa nova para os The
Chant. É uma conquista talvez daquilo que nos álbuns anteriores era
mais embrionário. A concentração num esquema instrumental mais
complexo e pausado, com canções longas e imprevisíveis, leva-os
num sentido mais sinfónico sem recurso a orquestra que as letras de
Ilpo Paasela e Maari Jämback integram de uma forma quase orgânica.
Mas mais do que nunca, 'New haven' situa os The Chant no campo do
atmospheric rock, com
bastante segurança (uma vez que facilmente neste subgénero
encontramos propostas que resvalam para o lamechas). O imaginário
que sugerem em canções como Drifter, Come to pass,
Cloud Symmetry ou
Earthen são
dificilmente imediatos, pelo contrário, apresentam uma estranheza
que nos exige tempo e um certo investimento emotivo para
verdadeiramente sermos capazes de os compreender. É também um conjunto de canções (particularmente Earthen, Playwright e Come to pass) um tanto cinematográficas. Há um ambiente muito nórdico e glacial que se cria nos longos solos sem voz. Quando a voz intervém, parece em diálogo consigo mesma. Pergunta-se, responde-se, engana-se e desengana-se. Discretamente, os The Chant criaram uma espécie de pequena tragédia íntima, um progresso pessoal num mundo desviado daquilo que dele se esperava.
Também
influenciados pelo metal
e por uma tendência para o atmospheric rock
são os belgas Steak Number Eight (SN8), banda originária de
Wevelgem, formada por Brent Vanneste (voz, guitarra), Joris Casier
(bateria), Jesse Surmont (baixo) e Cis Deman (guitarra), que lançou
já os álbuns 'When the candle dies out...' (2008), 'All is chaos'
(2011) e o mais recente 'The hutch' (2013).
Desde
o primeiro álbum, é notória a intenção de canalizar a
brutalidade e a atmosfera apocalíptica do black metal para
um registo que ficasse a meio caminho para o rock
industrial. As influências dos Mastodon, dos Cult of Luna, dos Dimmu
Borgir ou das primeiras experiências de Trent Reznor são assim
contrabalançadas por uma melancolia tensa que é herdada da fase de
transição dos Anathema ('The Silent Enigma' de 1995,
particularmente) ou ainda da influência mais estrutural dos Slayer
ou dos Iron Maiden.
No
essencial, no entanto, aquilo que os SN8 fazem está distanciado do
metal tanto quanto do
rock. Esse
meio-caminho é o que lhes permite a flexibilidade que caracteriza a
sua música: conquanto uniforme, ela oscila frequentemente entre a
atmosfera mais pesada e psicadélica e a deriva quase improvisada
mais sentimental e comovente. O trabalho dos SN8, e particularmente o
seu álbum inicial, dá ênfase efectiva à forma, por assim dizer:
as composições são de tal forma exacerbadas que têm qualquer
coisa de wagneriano, de profundamente trágico, que poderá passar
despercebido devido à tendência para o descontrolo e para a
brutalidade. Em canções como The holy truth, Falling out
of a dream ou no imponente The
sea is dying, esta dimensão
trágica e violenta é bastante notória, e ela representa, de resto,
aquilo que de melhor existe na música dos SN8.
No
entanto, a edição de 'All is chaos' parece ter sido um exercício
de radicalização por parte dos SN8. Aquilo que se encontrava
diluído e sintetizado em 'When the candle dies out...' surge aqui
nitidamente separado. As canções assumem praticamente todas um
cariz mais directo e contundente, baseado numa estrutura de
repetições e pausas que, apesar de representar uma regressão em
comparação ao álbum anterior, não deixa de proporcionar os seus
momentos intensos, como acontece com The calling, Blackfall
ou Man vs. Man. Ao
longo do álbum, no entanto, vão surgindo alguns momentos que,
dir-se-ia que intencionalmente, funcionam como interrupções,
canções como Trapped, Stargazing ou
Track into the sky,
que se distinguem claramente das outras por uma aproximação ao lado
mais directamente melódico e poético. O que parece acontecer entre
os dois álbuns é que, onde o primeiro era extremamente bem sucedido
ao diluir duas vertentes quase diametralmente opostas na mesma
canção, o segundo se esforça por separar essas vertentes,
assumindo-as com morfologias diferentes e com um desequilíbrio
propositado: os momentos mais contemplativos acabam sempre por, a
dado momento, resvalar para o lado mais violento e apocalíptico.
Ainda que 'All is chaos' esteja longe de soar como um projecto
falhado (contém, é preciso dizê-lo, algumas das melhores canções
que a banda já produziu), é também verdade que ele causa uma certa
estranheza ao recuar na síntese perfeita e estranha que 'When the
candle dies out...' representava.
Até
certo ponto, talvez a própria banda tenha tido consciência disso.
'The Hutch' é o seu trabalho mais complexo e mais conseguido até à
data. Há neste terceiro trabalho dos SN8 um lado experimental muito
acentuado, que passa também pela inclusão de uma electrónica
discreta, e ainda por uma completa liberdade a um nível estrutural.
As canções parecem, logo desde a primeira, Cryogenius, não
ser propriamente canções, mas peças, com variantes, pormenores e
afluentes, que transformam cada faixa num pequeno conjunto de
elementos que, somados, resultam numa estranheza muitíssimo
conseguida. É um regresso à síntese entre o lado mais barroco e
emocional e a componente metal mais
do que assumida. A matriz parece, paradoxalmente, vir dos Mastodon e
dos Katatonia, ou particularmente dos álbuns mais recentes dos
primeiros e dos mais antigos dos segundos. Mas o resultado é denso e
pessoal. Mais do que nunca, os SN8 parecem ter ganho uma identidade,
um caminho definido. A expressão da raiva e do descontrolo conhece com esta banda uma densidade convincente, que soa muitíssimo madura. Quem esperar uma raivinha adolescente, não vai encontrá-la aqui. Quem grita nestas canções parece ter acumulado durante anos a vontade de o fazer.
Uma
proposta também concentrada no potencial emotivo e melódico do rock
pesado surge-nos com os suíços Last Leaf Down (LLD). O colectivo
formado por Benjamin Schenk (voz e
guitarra), Danny Bruno Dorn (baixo), Sascha Jeger (guitarra) e Patrick Hof (bateria)
lançou, desde 2012 vários singles: 'Disengage' (2012), 'In dreams'
(2012), 'Truth is a liar' (2012), 'Fake lights in the sky' (2013) e
'The thought that I saw you' (2013). O álbum de estreia, 'Fake lights', lançado recentemente, reúne estas e outras canções.
De
todas as bandas que este texto refere, os LLD são a que menos
trabalho tem apresentado. No entanto, há uma solidez no trabalho que mostram até agora que faz prever um pouco mais do que uma
mera promessa. Dizer que, na sua fusão entre rock, metal e a
''escola'' britânica do shoegaze, os LLD são influenciados pelos My
Bloody Valentine, por algum do trabalho dos Cocteau Twins e por,
principalmente, os Anathema e os Katatonia, será dizer parte da
verdade. Conquanto estas influências sejam assumidas e
reconhecíveis, há na forma como os LLD interpretam estas
influências qualquer coisa que é diferente. Das suas influências,
os LLD aprenderam o poder da beleza, a forma de criar atmosferas, a
articulação entre o agressivo e o comovente. Mas há neles qualquer
coisa de glacial e de etéreo, de quase fantasioso. Mas é uma
fantasia até certo ponto distópica. Em todas as canções lançadas
desde 2012, há uma angústia densa, uma incursão quase
fenomenológica por reinos desencantados. Talvez essa ambiência
tenha que ver com o clima de um país do norte da Europa, como a
Suíça. Na música dos LLD parece haver neve, tudo nela recria um
ambiente solitário, isolado, parado mas profundamente vivo, no
sentido em que há uma tristeza vibrante que é sugerida por essas
sensações de distância em relação ao mundo.
Esta
energia contemplativa e depressiva faz-se sentir com especial
intensidade no mais recente The thought that I saw you, uma
invulgar canção de amor, cuja letra procura, nos elementos mortos e
frios da natureza, uma espécie de transcendência do fiasco amoroso.
Esta canção retoma aquilo que acontecia já no inicial Disengage,
uma canção um pouco mais
áspera, mas que era já eficaz, particularmente pela capacidade de
estruturar uma série de momentos díspares (solos de guitarra
eléctrica, por exemplo) numa mesma canção que, de uma forma um
tanto barroca, parecia ser a assimilação de várias canções.
Em
Born dead há
até uma certa influência da música medieval (não é difícil
recordar Hildegard Von Bingen, outra compositora vinda do frio), que
se coaduna de uma forma surpreendentemente perfeita com a atmosfera
da música dos LLD.
Outra
canção que importa referir é In dreams, eventualmente
aquela onde as referências da banda são mais audíveis, mas onde
surgem, igualmente, sintetizadas de uma forma mais conseguida. Aqui,
parece haver a presença fantasmática de uma sonoridade mais urbana,
mas mesmo essa não soa a mais do que uma reminiscência longínqua.
E
é isso que faz dos LLD, mesmo antes da publicação do álbum de
estreia, um projecto interessante. A sua música parece operar no
campo da imagem (e os videoclips simples e quase abstractos
remetem-nos para isso mesmo), como se o som tivesse um qualquer
poder cinestésico. É nesse sentido que toda a sua música chega a
parecer scy-fy, no
sentido em que nos coloca na própria aniquilação do mundo
construído, e nos conduz a uma espécie de tempo pós-futuro, em que
sobra apenas o vazio deixado pela civilização. A memória do mundo
construído assombra as composições, mas é sobre o vazio que ficou
que elas se debruçam de forma mais concreta. Assim, ficamos perante
uma emotividade desfeita, comovida e saudosa mas parca em esperança.
A sua beleza resulta de um olhar sobre a morte, o abandono e o
fiasco, mitificados e embelezados porque são tudo aquilo que sobrou. A música dos LLD é profundamente imaginativa. O que nela soa familiar parece uma reminiscência do futuro, mais do que uma memória nostálgica.
(Parte 3: ler aqui)
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