segunda-feira, 2 de março de 2015

Cinco novas bandas (Parte 2)

(Parte 1: ler aqui)

O percurso dos Anathema tem sido de alguma forma discreto no contexto do rock dos últimos anos, mas o seu estatuto de banda de culto dever-se-à, entre outros aspectos, ao facto de terem atravessado de forma exemplar uma espécie de progresso que outras bandas não tiveram a capacidade de fazer. Dificilmente com 'Serenades', o primeiro EP da banda, lançado em 1993, se poderia prever que os Anathema estariam, dez anos depois, a gravar um álbum como 'A Natural Disaster'. O início da banda dos irmãos Cavanagh está no doom-metal, ainda com Darren White como vocalista. Quando este abandona o projecto, os Anathema desviam-se cada vez mais no sentido de um rock progressivo que se vai tornando mais polido e complexo, definido por mutações constantes que, conquanto sejam por vezes arriscadas (e o mais recente 'Distant Satellites' é prova disso), também têm afirmado a banda como um projecto verdadeiramente amplo e variado. Os Anathema parecem ter-se deparado com a adversidade de começar a trabalhar a partir de um extremo. A transfiguração parece ter sido a saída mais inteligente para a banda. 
Os Anathema podem não ser a banda mais comum de referir para músicos que fazem percursos de alguma forma semelhantes (os Opeth seriam uma referência mais usual), mas, perante precisamente alguns projectos mais recentes, percebemos que os Anathema permitiram a uma série de músicos uma aprendizagem sobre como resolver criativamente o problema de se ficar preso num extremo do espectro musical e emocional.



É de certa forma o caso dos finlandeses The Chant. O colectivo formado por Ilpo Paasela (voz), Jussi Hämäläinen (voz, guitarra), Mari Jämbäck (piano e teclados), Kimmo Tukiainen (guitarra), Markus Forsström (baixo), Roope Siven (bateria) e Pekka Loponen (voz, guitarra) lançou em 2008 o primeiro EP, 'Ghostlines' e, desde então, três álbuns: 'This is the world we know' (2010), 'A Healing place' (2012) e 'New Haven' (2014).
É verdade que no EP ouvimos pouco mais que uma banda a experimentar(-se), mas nos dois anos que passaram até ao primeiro álbum, os The Chant parecem ter encontrado um terreno sólido para se expressarem. A capa de 'This is the world we know' talvez explique exactamente aquilo que esse álbum parece representar: um rapaz pendurado numa vedação olha fixamente para um ponto que está fora do campo de visão. Esse encontrar de alguma coisa definida é o que marca a diferença entre 'Ghostlines' e 'This is the world we know'. A música dos The Chant, e particularmente nos seus melhores momentos (Armoured man, November 1983, Will you follow, Safe world, Reflected) tinha uma solidez definitiva, havia nela algo de muito negro e muito pesado, contraposto por uma espécie de aproximação de uma redenção (dizia-se na letra de Will you follow: treasure is the light bearer/ speaking without words to me,/ now is the moment for courage) . Essa solidez não passava ao lado de algumas lições tiradas de bandas como os A Perfect Circle, os Katatonia e da fase 'Alternative 4' – 'Judgement' dos Anathema.
O problema com 'This is the world we know' era no entanto o extremo a que parecia ir, dentro daquilo que era o seu universo. O que era angustiado e sem esperança no primeiro álbum teve então necessidade de efectivamente dar esse passo em direcção à redenção prometida. E é isso que marca o segundo álbum, 'A healing place'. O título é, aliás, auto-explicativo. As canções eram, até certo ponto, mais directas e mais intensas ao encarar uma espécie de mundo doente (Outlines, Riverbed, The black corner), mas que passava também por uma espécie de compreensão profunda desse mesmo mundo. Adoecer e convalescer: eis o que acontecia do primeiro para o segundo álbum dos The Chant. A esperança vinha desse estado em que a doença ainda está presente mas prestes a desaparecer. As composições melódicas e meditativas, que desenvolviam aquilo que no primeiro álbum era mais prototípico, reforçavam precisamente essa ideia. 'A healing place' tinha mesmo alguma coisa de terapêutico e de fascinante, mesmo quando soava mais desesperante (o caso de Outlines sendo o mais extremo de todos).



Com o terceiro álbum, os The Chant parecem ter chegado à possibilidade de sintetizar as duas vertentes que experimentara primeiro em separado. 'New haven', lançado há pouco mais de um mês, é uma espécie de fusão entre o rock pesado e cabisbaixo de 'This is the world we know' e o lado mais experimental e intimista de 'A healing place'. Mas 'New haven' é realmente qualquer coisa nova para os The Chant. É uma conquista talvez daquilo que nos álbuns anteriores era mais embrionário. A concentração num esquema instrumental mais complexo e pausado, com canções longas e imprevisíveis, leva-os num sentido mais sinfónico sem recurso a orquestra que as letras de Ilpo Paasela e Maari Jämback integram de uma forma quase orgânica. Mas mais do que nunca, 'New haven' situa os The Chant no campo do atmospheric rock, com bastante segurança (uma vez que facilmente neste subgénero encontramos propostas que resvalam para o lamechas). O imaginário que sugerem em canções como Drifter, Come to pass, Cloud Symmetry ou Earthen são dificilmente imediatos, pelo contrário, apresentam uma estranheza que nos exige tempo e um certo investimento emotivo para verdadeiramente sermos capazes de os compreender. É também um conjunto de canções (particularmente Earthen, Playwright e Come to pass) um tanto cinematográficas. Há um ambiente muito nórdico e glacial que se cria nos longos solos sem voz. Quando a voz intervém, parece em diálogo consigo mesma. Pergunta-se, responde-se, engana-se e desengana-se. Discretamente, os The Chant criaram uma espécie de pequena tragédia íntima, um progresso pessoal num mundo desviado daquilo que dele se esperava. 


Também influenciados pelo metal e por uma tendência para o atmospheric rock são os belgas Steak Number Eight (SN8), banda originária de Wevelgem, formada por Brent Vanneste (voz, guitarra), Joris Casier (bateria), Jesse Surmont (baixo) e Cis Deman (guitarra), que lançou já os álbuns 'When the candle dies out...' (2008), 'All is chaos' (2011) e o mais recente 'The hutch' (2013).
Desde o primeiro álbum, é notória a intenção de canalizar a brutalidade e a atmosfera apocalíptica do black metal para um registo que ficasse a meio caminho para o rock industrial. As influências dos Mastodon, dos Cult of Luna, dos Dimmu Borgir ou das primeiras experiências de Trent Reznor são assim contrabalançadas por uma melancolia tensa que é herdada da fase de transição dos Anathema ('The Silent Enigma' de 1995, particularmente) ou ainda da influência mais estrutural dos Slayer ou dos Iron Maiden.
No essencial, no entanto, aquilo que os SN8 fazem está distanciado do metal tanto quanto do rock. Esse meio-caminho é o que lhes permite a flexibilidade que caracteriza a sua música: conquanto uniforme, ela oscila frequentemente entre a atmosfera mais pesada e psicadélica e a deriva quase improvisada mais sentimental e comovente. O trabalho dos SN8, e particularmente o seu álbum inicial, dá ênfase efectiva à forma, por assim dizer: as composições são de tal forma exacerbadas que têm qualquer coisa de wagneriano, de profundamente trágico, que poderá passar despercebido devido à tendência para o descontrolo e para a brutalidade. Em canções como The holy truth, Falling out of a dream ou no imponente The sea is dying, esta dimensão trágica e violenta é bastante notória, e ela representa, de resto, aquilo que de melhor existe na música dos SN8.
No entanto, a edição de 'All is chaos' parece ter sido um exercício de radicalização por parte dos SN8. Aquilo que se encontrava diluído e sintetizado em 'When the candle dies out...' surge aqui nitidamente separado. As canções assumem praticamente todas um cariz mais directo e contundente, baseado numa estrutura de repetições e pausas que, apesar de representar uma regressão em comparação ao álbum anterior, não deixa de proporcionar os seus momentos intensos, como acontece com The calling, Blackfall ou Man vs. Man. Ao longo do álbum, no entanto, vão surgindo alguns momentos que, dir-se-ia que intencionalmente, funcionam como interrupções, canções como Trapped, Stargazing ou Track into the sky, que se distinguem claramente das outras por uma aproximação ao lado mais directamente melódico e poético. O que parece acontecer entre os dois álbuns é que, onde o primeiro era extremamente bem sucedido ao diluir duas vertentes quase diametralmente opostas na mesma canção, o segundo se esforça por separar essas vertentes, assumindo-as com morfologias diferentes e com um desequilíbrio propositado: os momentos mais contemplativos acabam sempre por, a dado momento, resvalar para o lado mais violento e apocalíptico. Ainda que 'All is chaos' esteja longe de soar como um projecto falhado (contém, é preciso dizê-lo, algumas das melhores canções que a banda já produziu), é também verdade que ele causa uma certa estranheza ao recuar na síntese perfeita e estranha que 'When the candle dies out...' representava.



Até certo ponto, talvez a própria banda tenha tido consciência disso. 'The Hutch' é o seu trabalho mais complexo e mais conseguido até à data. Há neste terceiro trabalho dos SN8 um lado experimental muito acentuado, que passa também pela inclusão de uma electrónica discreta, e ainda por uma completa liberdade a um nível estrutural. As canções parecem, logo desde a primeira, Cryogenius, não ser propriamente canções, mas peças, com variantes, pormenores e afluentes, que transformam cada faixa num pequeno conjunto de elementos que, somados, resultam numa estranheza muitíssimo conseguida. É um regresso à síntese entre o lado mais barroco e emocional e a componente metal mais do que assumida. A matriz parece, paradoxalmente, vir dos Mastodon e dos Katatonia, ou particularmente dos álbuns mais recentes dos primeiros e dos mais antigos dos segundos. Mas o resultado é denso e pessoal. Mais do que nunca, os SN8 parecem ter ganho uma identidade, um caminho definido. A expressão da raiva e do descontrolo conhece com esta banda uma densidade convincente, que soa muitíssimo madura. Quem esperar uma raivinha adolescente, não vai encontrá-la aqui. Quem grita nestas canções parece ter acumulado durante anos a vontade de o fazer.



Uma proposta também concentrada no potencial emotivo e melódico do rock pesado surge-nos com os suíços Last Leaf Down (LLD). O colectivo formado por Benjamin Schenk (voz e guitarra), Danny Bruno Dorn (baixo), Sascha Jeger (guitarra) e Patrick Hof (bateria) lançou, desde 2012 vários singles: 'Disengage' (2012), 'In dreams' (2012), 'Truth is a liar' (2012), 'Fake lights in the sky' (2013) e 'The thought that I saw you' (2013). O álbum de estreia, 'Fake lights', lançado recentemente, reúne estas e outras canções.
De todas as bandas que este texto refere, os LLD são a que menos trabalho tem apresentado. No entanto, há uma solidez no trabalho que mostram até agora que faz prever um pouco mais do que uma mera promessa. Dizer que, na sua fusão entre rock, metal e a ''escola'' britânica do shoegaze, os LLD são influenciados pelos My Bloody Valentine, por algum do trabalho dos Cocteau Twins e por, principalmente, os Anathema e os Katatonia, será dizer parte da verdade. Conquanto estas influências sejam assumidas e reconhecíveis, há na forma como os LLD interpretam estas influências qualquer coisa que é diferente. Das suas influências, os LLD aprenderam o poder da beleza, a forma de criar atmosferas, a articulação entre o agressivo e o comovente. Mas há neles qualquer coisa de glacial e de etéreo, de quase fantasioso. Mas é uma fantasia até certo ponto distópica. Em todas as canções lançadas desde 2012, há uma angústia densa, uma incursão quase fenomenológica por reinos desencantados. Talvez essa ambiência tenha que ver com o clima de um país do norte da Europa, como a Suíça. Na música dos LLD parece haver neve, tudo nela recria um ambiente solitário, isolado, parado mas profundamente vivo, no sentido em que há uma tristeza vibrante que é sugerida por essas sensações de distância em relação ao mundo.
Esta energia contemplativa e depressiva faz-se sentir com especial intensidade no mais recente The thought that I saw you, uma invulgar canção de amor, cuja letra procura, nos elementos mortos e frios da natureza, uma espécie de transcendência do fiasco amoroso. Esta canção retoma aquilo que acontecia já no inicial Disengage, uma canção um pouco mais áspera, mas que era já eficaz, particularmente pela capacidade de estruturar uma série de momentos díspares (solos de guitarra eléctrica, por exemplo) numa mesma canção que, de uma forma um tanto barroca, parecia ser a assimilação de várias canções.


Em Born dead há até uma certa influência da música medieval (não é difícil recordar Hildegard Von Bingen, outra compositora vinda do frio), que se coaduna de uma forma surpreendentemente perfeita com a atmosfera da música dos LLD.
Outra canção que importa referir é In dreams, eventualmente aquela onde as referências da banda são mais audíveis, mas onde surgem, igualmente, sintetizadas de uma forma mais conseguida. Aqui, parece haver a presença fantasmática de uma sonoridade mais urbana, mas mesmo essa não soa a mais do que uma reminiscência longínqua.
E é isso que faz dos LLD, mesmo antes da publicação do álbum de estreia, um projecto interessante. A sua música parece operar no campo da imagem (e os videoclips simples e quase abstractos remetem-nos para isso mesmo), como se o som tivesse um qualquer poder cinestésico. É nesse sentido que toda a sua música chega a parecer scy-fy, no sentido em que nos coloca na própria aniquilação do mundo construído, e nos conduz a uma espécie de tempo pós-futuro, em que sobra apenas o vazio deixado pela civilização. A memória do mundo construído assombra as composições, mas é sobre o vazio que ficou que elas se debruçam de forma mais concreta. Assim, ficamos perante uma emotividade desfeita, comovida e saudosa mas parca em esperança. A sua beleza resulta de um olhar sobre a morte, o abandono e o fiasco, mitificados e embelezados porque são tudo aquilo que sobrou. A música dos LLD é profundamente imaginativa. O que nela soa familiar parece uma reminiscência do futuro, mais do que uma memória nostálgica. 

(Parte 3: ler aqui

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