segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

(Monólogo a horas mortas)


Não sei o que me toma a esta hora ou, sabendo-o, ignoro-o para que não sejam cúmplices os ouvidos da cidade -queda e translúcida se pudessem deambular nela meus passos. Nenhuma coisa é já premente se bem que me construa afincadamente até me doerem as pálpebras e o gosto acre do perfil. Seremos protagonistas de uma história sem fim vislumbrado, a cidade e eu, ensimesmadas no abandono de quem laboriosamente representa o teu papel, o meu, o de tantos eus que por não se morderem se infertilizaram. Sitiados é bem verdade dentro da razão sua, ás vezes da revolta, também omissos, inoportunos na displicência instituída de cada dia. E se uivam agora os cães, que presságios acarreta o eco enquanto tantos dormem? Será versátil todo este viver connosco próprios na espera do amanhã vir. Debalda-se a expectativa na despedida de alguma luz que se apaga vista desta janela. Como se um comboio viesse mesmo sem alguém no cais.
Quem chegará a colher os meus passos? [Tempos houve em que falei de heróis de espuma, do aliciante vento da promessa. Ou, à beira de renegá-los, escrevia já poemas de raiva prevendo a desesperança -foi a confissão que alguém, podendo uma vez ter lido, nunca leu. E vinham então os arrebatamentos pueris, o espasmo por limar da decepção. E crescendo ia sempre este casulo à força de se me fatigarem as palavras.] Quem me cortará os atalhos, a fim de que chegue mais depressa? Do lado de cá, onde eu ciclicamente como que deixo de sentir-me, que apelos sobressaem dos ruídos, dos imensos múltiplos ruídos do canal da vida? Será vagarosa e interminável esta luta. Além, imobilizam-se os desatinos de eu-espectadora. Cá, deste lado, talvez o travo do cigarro como marca, algum troço mais indelével, alguma crença restabelecida que que o mundo sancione e eu esforçadamente alimente. Este o destino do que é fluido e incomestível: a passividade das paredes, o odor a esperma transviado, um simulacro de aventura. E se alguém se esvai de noite entre os lençóis, sei não ser eu a causa primeira, nem final.

Wanda Ramos
Intimidade da Fala
1983, ed. &etc
desenho de Dante Gabriel Rossetti

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