a famosa cena da sala vermelha, do terceiro episódio de "Twin Peaks", realizado por David Lynch.
domingo, 27 de junho de 2010
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Katy Brand, sempre melhor que o original
neste caso, "Bad Spella", incarnando o "Umbrella" de Rhianna. Como a própria diz, "my songs don´t make much sense"
e aqui, como Lady Gaga que enquanto "just dance(s)" has "No Pants"
love without pain isn´t really romance
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Royksopp, Only This Moment
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Royksopp, Only This Moment
sobre
Citações Filosóficas,
Royksopp
The Saddest Thing to Say
Legendary Tigerman e Lisa Kekaula, ao vivo.
sobre
Lisa Kekaula,
Musica,
The Legendary Tigerman,
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sábado, 19 de junho de 2010
Provavelmente Tristeza
Há dias assim, em que vemos de certa forma desaparecer uma referência da nossa vida, cultural e outra. É um desaparecimento que não o é realmente ou completamente, mas não deixa de se perder alguma coisa.
Morreu ontem José Saramago, um dos meus romancistas preferidos, e, de certa forma, perdi uma referência que era cultural, ideológica, e por ser estas duas coisas, pessoal também. Ou principalmente.
Em 1998 foi Prémio Nobel da Literatura, também. Apesar disso, penso que só posso falar de mim, do que significa para mim.
Os livros de José Saramago existiam na casa dos meus pais antes de existir eu, mas para mim, José Saramago começou há cinco anos atrás: eu tinha quinze anos e o "Ensaio Sobre a Cegueira" fez-me ver muitas coisas, bem como o "Ensaio Sobre a Lucidez" que li quase de seguida. Percebi logo que Saramago excedia largamente o conceito do romancista. Ele era, e continua a ser, um pensador, verdadeiramente um lúcido, mesmo quando parecia lúdico. Do José Saramago que tentava ser poeta dos "Poemas Possíveis" e de "Provavelmente Alegria" ao José Saramago que na prosa conquistou a plenitude, ensaiou brilhantemente sobre a nossa cegueira política e humana, uma cegueira profunda e praticamente irresolúvel. Era um homem de uma inteligência extrema que nunca foi glacial, porque a ele devemos também histórias de amor como "Memorial do Convento" que, apesar de desde há vários anos ter vindo a ser objecto de tentativas de destruição com o ensino secundário, continua sendo uma das maiores histórias de amor alguma vez escrita, um amor que é muito mais épico do que o épico da construção do convento de Mafra, o amor entre um homem maneta e uma mulher que em jejum via os homens por dentro e que para não o ver a ele todas as manhãs de olhos fechados comia uma côdea de pão.
A José Saramago devemos também romances que pensam a uma luz diferente da habitual questões como a morte, que parece agora ter mais importância ainda, como em "As Intermitências da Morte", da História de um país e do seu povo, como em "Levantado do Chão" e mesmo de referências culturais como em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", além da igreja, que não deixa de nos parecer uma forma de fuga de um mundo sem deus, como vemos em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" e mais recentemente "Caím", romances de uma leitura tão complexa quanto pungente e que tão mal caíram a um país em fuga do seu estado sitiado como é Portugal.
Talvez por o ver morrer o seu autor, parece-me inevitável pensar em "As Intermitências da Morte". Lembremos que a Morte se apaixona pelo violoncelista e "no dia seguinte ninguém morreu". Não só percebemos que afinal a Morte ainda não se apaixonou, como ainda não aprendeu a falar para nós, porque ainda não aprendeu a dizer nada perante a maior dor humana. Isto já o dizia Saramago no seu romance, e ainda não mudou.
Como não mudou ainda a nossa cegueira, a nossa falta de lucidez, a nossa vassalagem ao poder instituido, a nossa falta de rebelião, a nossa inépcia. Saramago não fez mais do que lhe competia: pensou, deu-nos essa arma e a possibilidade de a usar.
Agora que morre o homem e nos ficam os livros, só me resta desejar a José Saramago que por muito tempo não descanse em paz, porque não consigo imaginar pior destino para um artista do que descansar em paz. Espero que durante muito tempo lhe dêem voltas e mais voltas e se debrucem sobre a sua obra de uma forma mais séria do que enquanto foi vivo e despertou tantas invejas e dores de cotovelo, como convém a todos aqueles que arriscam estar acima da banalidade.
sexta-feira, 18 de junho de 2010
segunda-feira, 14 de junho de 2010
vídeos novos (ou nem por isso) de dois velhos presentes nos meus headphones
a sensualidade serena e exótica de Sade Adu em "Soldier Of Love", titletrack do álbum de 2010. Um regresso aguardado que não desilude
não menos sensuais, os Editors com "You Don´t Know Love", segundo single do mais recente "In This Light and On This Evening"
Alberto Pimenta- Ana Hatherly
Lisboa, 10 de Janeiro de 1996
Ana
desculpe
estou em pânico, a minha mulher há dias desapareceu, perdão, veja lá, já nem escrever sei: a minha mulher a dias desapareceu.
Já comprei montes de tachos e de louça, e também roupa. Mas os montes de coisas sujas acumulam-se, fora, mas acho que também dentro de mim. A única vantagem dos tachos é defender das pistolas. Elles agora trazem pistolas. Piss-tolas… ih ih! Esguicham tudo. Os tachos é para aparar, percebe?
abraço
Alberto
Ana
desculpe
estou em pânico, a minha mulher há dias desapareceu, perdão, veja lá, já nem escrever sei: a minha mulher a dias desapareceu.
Já comprei montes de tachos e de louça, e também roupa. Mas os montes de coisas sujas acumulam-se, fora, mas acho que também dentro de mim. A única vantagem dos tachos é defender das pistolas. Elles agora trazem pistolas. Piss-tolas… ih ih! Esguicham tudo. Os tachos é para aparar, percebe?
abraço
Alberto
18 de Janeiro de 1996
p. 125 do meu [Ana Hatherly] Diário Infrequente:
Recebi uma carta do Alberto. Acho que endoideceu. Elles devem tê-lo esvaziado completamente. O que vai ser agora da nossa causa?
Alberto Pimenta e Ana Hatherly
Elles- Um Epistolado
1999, editorial Escritor
sobre
Alberto Pimenta,
Ana Hatherly,
Cartas
Grito
Silêncio
Do silêncio faço um grito
Que o corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco
De sombra a sombra
Há um céu tão recolhido
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido
Ao céu
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais quando se vive atrás dela
E eu
A quem o sol esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora
Solidão
Que nem mesmo essa é inteira
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura
Ai, solidão
Quem fôra escorpião
Ai, solidão
E se morder à cabeça, adeus
Já fui para além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada à parede,
Adeus
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai como dói
A solidão quase loucura
Do silêncio faço um grito
Que o corpo todo me dói
Deixai-me chorar um pouco
De sombra a sombra
Há um céu tão recolhido
De sombra a sombra
Já lhe perdi o sentido
Ao céu
Aqui me falta a luz
Aqui me falta uma estrela
Chora-se mais quando se vive atrás dela
E eu
A quem o sol esqueceu
Sou a que o mundo perdeu
Só choro agora
Que quem morre já não chora
Solidão
Que nem mesmo essa é inteira
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura
Ai, solidão
Quem fôra escorpião
Ai, solidão
E se morder à cabeça, adeus
Já fui para além da vida
Do que já fui tenho sede
Sou sombra triste
Encostada à parede,
Adeus
Vida que tanto duras
Vem morte que tanto tardas
Ai como dói
A solidão quase loucura
Amália Rodrigues
Versos
2004, ed. Cotovia
domingo, 13 de junho de 2010
uma prosa poética
Elles montent la guarde. Elles se relaient. Si leur vigilance jamais ne se relâche, elles savant pourtant se montrer discrètes, voire plaisantes, comme por atténuer la rigueur d’un châtiment à l´execution duquel elles veillent mais qu´elles n´ont pas pronocé. Elles ne jugent pas, se contentent de vérifier que l´ordre règne et ne manifestant aucune animosité à l´égard des condamnés. Il ne faut pas toutefois songer à echapper à leur surveillance: sous leur mine indifférente ou avenante, elles sont implacables, ne connaissent que le service et chacune tient à laisser tout en ordre à celle que vient la remplacer. Simplement elles n´éprouvent pas le besoin de forcer la note patibulaire, de s´harnecher d´un cuirasse ou de porter une arme. Elles sont restées féminines en dépit de leur métier. Elles se ressemblent par l’uniforme, mais chacune s’efforce, par la coiffure, le port d’un bijou ou quelque maquillage, de se distinguer de ses collègues. Elles ne cherche pas à séduire et pourtant rivalisent de subtiles coquetteries. Elles font un sale boulot, le savent; aussi se réjouissent-elles de sentir parfois, à son accueil, au moment de le relève, qu´un prisonnier les attendait, qu´elles peuvent représenter une lumière symbolique, uns présence réconfortante à défaut d´une rédemption, même pour un coeur endurci. Elles ne remercient jamais, ne distribuent aucune faveur. Les rapports entre gardes et prisonniers se maintiennent cordiaux tant que les distances sont respectées. Toute intimité entre eux est proscrite. De toute manière, elles restent muettes pendant la durée de leur garde. Elles peuvent sourire mais ne se laissent pas attendrir. Satisfaites qu´on les admire, heureuses qu´on les attende, dédaigneuses qu´on les craigne, elles sont incorruptibles et semblent na jamais être touchées de la souffrance réelle ou feinte des reclus qu´elles ont à charge de surveiller. Au moins sont-elles impartiales. Pourtant on les amerait plus faibles, plus humaines. Leur silencieuse présence suffit à faire pescer plus lourd le joug de la punition. Car l´homme, dans son inconscience, a pu croire lors de l´expulsion de l´Éden qu´il gagnait au change, qu´il troquait un jardin pour le vaste monde, alors qu´en fait il quittait l´éternité pour le bagne du temps.
Saguenail
Exils
2009, ed. Hélastre
desenho de Sadsamson (2008)
***
Elas montam guarda. Cansam-se. Mesmo que a sua vigilância nunca baixe, elas sabem portanto mostrar-se discretas, até prazenteiras, como se atenuassem o rigor de um castigo daquele que elas velam sem o pronunciarem. Elas não julgam, contentam-se em verificar que a ordem reina e não manifestam nenhuma simpatia pelos condenados. Nem sempre é preciso pensar em escapar à sua vigilância: no seu rosto indiferente ou afável elas são implacáveis, não conhecem senão o seu serviço e cada uma tem que deixar tudo em ordem para a que a vem substituir. Simplesmente elas não aprovam a necessidade de forçar a nota patibular ou de exibir um látego ou de portar uma arma. São ainda femininas, apesar do seu título. Elas assemelham-se pelo uniforme, mas cada uma se esforça, pelo penteado, pela graça de um batom ou qualquer maquilhagem para se distinguir das colegas. Elas não procuram seduzir, apenas rivalizam em pequenas vaidades. Elas enchem uma sala e sabem-no, também rejubilam de por vezes sentir que, no momento da rendição, um prisioneiro as procura, que elas podem representar uma luz simbólica, uma presença reconfortante quase como uma redenção, mesmo num coração endurecido. Elas não sentem misericórdia alguma, não distribuem quaisquer favores. Os contactos entre guardas e prisioneiros mantêm-se cordiais, as distâncias são respeitadas. Toda a intimidade entre eles é proscrita. De qualquer forma, elas ficam atentas durante os seus turnos. Podem sorrir mas não o dar a entender. Satisfeitas por serem admiradas, felizes por as procurarmos, desdenhosas por as temermos, são incorruptíveis, conseguem não se comover perante o sofrimento verdadeiro ou fingido dos reclusos que estão encarregues de encarcerar. Ao menos são imparciais. Portanto amamo-las mais frágeis, mais humanas. A sua presença silenciosa chega para fazer menos pesado o jugo da punição. Porque o homem, na sua inconsciência pôde chorar a expulsão do Éden, o que ganhou na troca, trocou um jardim por um vasto mundo, por isso o fizemos desistir da eternidade pelos trabalhos forçados do tempo.
Esboço de tradução de Sadsamson
sábado, 12 de junho de 2010
Blind Zero: Luna Park
DO INESGOTÁVEL
Mesmo assim, seria “A Way To Bleed Your Lover” de 2003, que haveria de acrescentar mais alguma “reputação” ao colectivo portuense, em particular por ter sido o primeiro álbum vencedor do prémio Best Portuguese Act da MTV. Totalmente merecido, claro, se momentos como “Nothing Else Goes”, “Toxic”, “You In Your Arms” ou “You Owe Us Blood” ainda não perderam, de todo, o sentido.
Em 1994 “Trigger”, disco de estreia de uma banda praticamente desconhecida era um disco invulgar entre nós. À luz dos anos que passaram, percebemos agora que “Trigger” era quase meramente um alicerce para uma obra que se tornaria bem maior do que aí se anunciava. Naquela pujança havia algo que soava a Pearl Jam, e seria essa talvez a maior fragilidade de “Trigger”. E se “Redcoast” (1997) vinha já atenuar bastante essa influência, a verdade é que, em termos críticos, o eco dos Pearl Jam se tornou um estigma para os Blind Zero, que mesmo hoje, quando já é totalmente injustificado, lhes é apontado. “Redcoast” tinha algo de experimentação, de apalpar terreno, mas continha também um punhado de grandes canções, como “The Big Truth”, “Skull” ou “Criminal Grace”. Mas terminava, definitivamente, com um acto de verdadeira rebelião: “Subtitle”: esta era a canção em que os Blind Zero conquistavam, sem retorno, uma identidade, ela é o primeiro objecto totalmente nítido que a banda produziu.
A partir daí, o trabalho foi sempre o de construir mais e mais dentro dessa identidade que já ficava lançada. “One Silent Accident” publicado em 2000 é um álbum de espantosa maturidade, impregnado de atmosferas que oscilam entre a melancolia violenta e a violência melancólica: é também neste álbum que estão algumas das que, para mim, serão das melhores canções dos Blind Zero, canções como “Lowstreetsidewaksequence”, “Daily Matters”, “Another One”, “Wish Tonight” e, principalmente, “Lately”.
A partir daí, o trabalho foi sempre o de construir mais e mais dentro dessa identidade que já ficava lançada. “One Silent Accident” publicado em 2000 é um álbum de espantosa maturidade, impregnado de atmosferas que oscilam entre a melancolia violenta e a violência melancólica: é também neste álbum que estão algumas das que, para mim, serão das melhores canções dos Blind Zero, canções como “Lowstreetsidewaksequence”, “Daily Matters”, “Another One”, “Wish Tonight” e, principalmente, “Lately”.
Mesmo assim, seria “A Way To Bleed Your Lover” de 2003, que haveria de acrescentar mais alguma “reputação” ao colectivo portuense, em particular por ter sido o primeiro álbum vencedor do prémio Best Portuguese Act da MTV. Totalmente merecido, claro, se momentos como “Nothing Else Goes”, “Toxic”, “You In Your Arms” ou “You Owe Us Blood” ainda não perderam, de todo, o sentido.
Ponto de maior maturidade ainda (É sempre neste sentido que a música dos Blind Zero caminha- o de um amadurecimento.), é “The Night Before and a New Day” (2005). Podemos entender este álbum como uma espécie de segundo tomo de “A Way To Bleed Your Lover”: a própria banda assume que quis dar um lado mais suave da sua música depois do negrume do álbum anterior: a esta certeira decisão devemos canções belíssimas como “Absent Without Permission”, “Day 1”, “Turn it On” ou “Black Roses”.
O sort-of-best-of “Time Machine: Memories Undone” de 2007 faz mais do que recolher alguns dos pontos altos dos primeiro 13 anos dos Blind Zero. A decisão de apresentar os temas ao vivo tem o excelente condão de corrigir completamente as fragilidades das canções mais antigas: pois que “Big Brother” ou “Recognize” soam tão melhor nestas versões, em que se nota realmente o “rosto” de quem as toca.
“Luna Park”, acabadíssimo de lançar, mostra-nos que “Time Machine: Memories Undone” é também um disco de charneira. Há algo de definitivamente muito novo depois dele.
“Luna Park” é incatalogável. Ele pertence aos Blind Zero, mas não é possível inseri-lo em nenhuma fase da sua música: pelo que podemos apenas concluir que uma nova fase se está a iniciar. Talvez não seja ao acaso que, em “Fun House”, Miguel Guedes repita “take another look at me now”. “Luna Park” tem mesmo que ser olhado, ou melhor, ouvido, com atenção, porque não é um álbum fácil, ou óbvio, pelo menos.
O contraponto entre a luminosidade e a obscuridade que foi feito separadamente nos álbuns de 2003 e 2005 é agora completamente condensado. Estas músicas têm algo de depressivo, mas também algo de muito esperançoso.
Não raras vezes as letras de Miguel Guedes nos confrontam com situações-limite, dolorosas, incisivas. Mas a sonoridade das canções consegue, estranhamente acompanhar essa espécie de desespero mas apontar-lhe também uma luz. Aproprio-me de dois versos do poeta Egito Gonçalves que me parecem fazer sentido aqui: “aumenta a raiva/ e a esperança reproduz-se”.
Prendo-me, a propósito disto, um pouco acerca do título: “Luna Park” é uma referência literária, mas também nos remete para uma espécie de parque de diversões: claro que este não é um disco divertido, longe disso aliás, mas é, de certa forma, uma sequência da ideia das caixas de bonecas que encontrávamos em “Black Roses” de “The Night Before and a New Day”: é olhar o dramatismo da vida com um olhar quase infantil, metaforicamente, ou seja, é o abandono da ideia do “sem-esperança” que parece ter-se tornado distintivo de tantas bandas ditas rock em Portugal e não só, e é antes um olhar que desdramatiza ou que para isso caminha, como se a vida se resumisse a esse parque de diversões onde se atravessam situações vertiginosas, mas das quais sabemos que sairemos ilesos. Ou quase, no que toca especificamente a este álbum.
É um pouco isto que nos oferece “Luna Park”. Os casos mais evidentes parecem-me ser “Fun House” ou “Loose Ends”, “How The Wind Blows” e de certa forma, também “Two Days”: é perante um sofrimento que as palavras nos colocam, mas a música faz o percurso “das trevas para a luz” (É de Isabel de Sá que agora me aproprio.).
A música perde um pouco da “crueza” que encontrávamos em “One Silent Accident”, por exemplo, dando mais atenção a arranjos de voz e outros. O que perde em “peso de som” ganha em sofisticação.
O sort-of-best-of “Time Machine: Memories Undone” de 2007 faz mais do que recolher alguns dos pontos altos dos primeiro 13 anos dos Blind Zero. A decisão de apresentar os temas ao vivo tem o excelente condão de corrigir completamente as fragilidades das canções mais antigas: pois que “Big Brother” ou “Recognize” soam tão melhor nestas versões, em que se nota realmente o “rosto” de quem as toca.
“Luna Park”, acabadíssimo de lançar, mostra-nos que “Time Machine: Memories Undone” é também um disco de charneira. Há algo de definitivamente muito novo depois dele.
“Luna Park” é incatalogável. Ele pertence aos Blind Zero, mas não é possível inseri-lo em nenhuma fase da sua música: pelo que podemos apenas concluir que uma nova fase se está a iniciar. Talvez não seja ao acaso que, em “Fun House”, Miguel Guedes repita “take another look at me now”. “Luna Park” tem mesmo que ser olhado, ou melhor, ouvido, com atenção, porque não é um álbum fácil, ou óbvio, pelo menos.
O contraponto entre a luminosidade e a obscuridade que foi feito separadamente nos álbuns de 2003 e 2005 é agora completamente condensado. Estas músicas têm algo de depressivo, mas também algo de muito esperançoso.
Não raras vezes as letras de Miguel Guedes nos confrontam com situações-limite, dolorosas, incisivas. Mas a sonoridade das canções consegue, estranhamente acompanhar essa espécie de desespero mas apontar-lhe também uma luz. Aproprio-me de dois versos do poeta Egito Gonçalves que me parecem fazer sentido aqui: “aumenta a raiva/ e a esperança reproduz-se”.
Prendo-me, a propósito disto, um pouco acerca do título: “Luna Park” é uma referência literária, mas também nos remete para uma espécie de parque de diversões: claro que este não é um disco divertido, longe disso aliás, mas é, de certa forma, uma sequência da ideia das caixas de bonecas que encontrávamos em “Black Roses” de “The Night Before and a New Day”: é olhar o dramatismo da vida com um olhar quase infantil, metaforicamente, ou seja, é o abandono da ideia do “sem-esperança” que parece ter-se tornado distintivo de tantas bandas ditas rock em Portugal e não só, e é antes um olhar que desdramatiza ou que para isso caminha, como se a vida se resumisse a esse parque de diversões onde se atravessam situações vertiginosas, mas das quais sabemos que sairemos ilesos. Ou quase, no que toca especificamente a este álbum.
É um pouco isto que nos oferece “Luna Park”. Os casos mais evidentes parecem-me ser “Fun House” ou “Loose Ends”, “How The Wind Blows” e de certa forma, também “Two Days”: é perante um sofrimento que as palavras nos colocam, mas a música faz o percurso “das trevas para a luz” (É de Isabel de Sá que agora me aproprio.).
A música perde um pouco da “crueza” que encontrávamos em “One Silent Accident”, por exemplo, dando mais atenção a arranjos de voz e outros. O que perde em “peso de som” ganha em sofisticação.
Em termos gerais, “Luna Park” não representa mais que um acto de profundíssima liberdade. E é minha crença pessoal que sem liberdade, não pode existir arte alguma. “Luna Park” é uma recusa de qualquer fórmula, não há uma sequer música que nos remeta para qualquer música passada; e é o disco em os Blind Zero correm mais riscos. São cinco discos de originais antes deste, e agora surge-nos um inesperado desvio. E um desvio que prova a flexibilidade da sonoridade dos Blind Zero. Porque pode perfeitamente moldar-se a um som mais suave sem deixar a sua atmosfera “urbano-decadente” dita grunge, sem qualquer tipo de depreciação. São aliás as canções onde se sente mais esta dualidade as mais fortes do álbum. Refiro-me a “Back to the Fire”, “Fun House” (Que me parece ser o ponto mais alto do álbum.) ou “All Alone We Dance”: além de canções de uma sonoridade distinta e conscientemente entristecedoras, são também dos melhores momentos líricos de Miguel Guedes, que à qualidade lírica nos tem já vindo a habituar. Arrisco, aliás dizer que Miguel Guedes é o melhor letrista português: em nenhuma outra banda as letras estão tão próximas da poesia. Excluo disto, como não podia deixar de ser, os Clã, mas o caso deles é diferente, pois que as letras são muitas vezes da autoria quer de letristas mais “conceituados” como Carlos Tê ou Sérgio Godinho, quer mesmo de poetas como é o caso de Regina Guimarães.
“Luna Park” segue também o esquema normal de todos os discos dos Blind Zero: uma dúzia de canções, todas elas incisivas, sem palha, e cada uma construída com minúcia e extremo perfeccionismo. Não estamos perante uma música de características barrocas, mas estamos perante uma música onde não se dispensa o pormenor. Daí a complexidade do som, que é mais audível aqui do que em qualquer momento passado. E isso acontece mesmo em “Slow Time Love” que se poderia considerar, de todo o conjunto, a canção mais radio-friendly.
Não esqueçamos também, porque é essencial, que “Luna Park” é uma edição de autor (O que, depois da quantidade/qualidade de produtores com quem já trabalharam é um acto de coragem.), onde o material é totalmente produzido pela própria banda. Se calhar, só esse tipo de “isolamento” poderia permitir a criação de um objecto com a qualidade de “Luna Park”. É já antiga a máxima de que a criação artística é primeiramente um acto de egoísmo, e isso é claro neste disco: não foi feito para agradar a ninguém. Mas o facto é que agrada e muito. Pelo menos a quem estiver interessado em ouvir Blind Zero. Aqueles que estão à procura dos Pearl Jam portugueses não os vão encontrar aqui, mas também duvido que procurem, porque há já muito tempo que não os têm encontrado.
Se é ou não o melhor álbum dos Blind Zero, não consegui decidir ainda. Mas que fica acima de qualquer expectativa, isso é sem dúvida.
“Luna Park” segue também o esquema normal de todos os discos dos Blind Zero: uma dúzia de canções, todas elas incisivas, sem palha, e cada uma construída com minúcia e extremo perfeccionismo. Não estamos perante uma música de características barrocas, mas estamos perante uma música onde não se dispensa o pormenor. Daí a complexidade do som, que é mais audível aqui do que em qualquer momento passado. E isso acontece mesmo em “Slow Time Love” que se poderia considerar, de todo o conjunto, a canção mais radio-friendly.
Não esqueçamos também, porque é essencial, que “Luna Park” é uma edição de autor (O que, depois da quantidade/qualidade de produtores com quem já trabalharam é um acto de coragem.), onde o material é totalmente produzido pela própria banda. Se calhar, só esse tipo de “isolamento” poderia permitir a criação de um objecto com a qualidade de “Luna Park”. É já antiga a máxima de que a criação artística é primeiramente um acto de egoísmo, e isso é claro neste disco: não foi feito para agradar a ninguém. Mas o facto é que agrada e muito. Pelo menos a quem estiver interessado em ouvir Blind Zero. Aqueles que estão à procura dos Pearl Jam portugueses não os vão encontrar aqui, mas também duvido que procurem, porque há já muito tempo que não os têm encontrado.
Se é ou não o melhor álbum dos Blind Zero, não consegui decidir ainda. Mas que fica acima de qualquer expectativa, isso é sem dúvida.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Agustina tem destas Coisas (14)
Há raros momentos de clarividência, mesmo nas criaturas mais triviais, e é sempre o sofrimento que os provoca.
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De “A Sibila”
quinta-feira, 10 de junho de 2010
No Sol
Irás achar que foi um erro e foi
um erro, que nada se passou
e na verdade nada acontece nunca
de verdade: a verdade seria
eterna e o acontecido pertence
aos eclipses do tempo precipícios
em que depois da morte ficam vivos
os momentos
caídos;
foi um erro porque nada existe
nem nós, já ao império das vagas
submetidos,
porém na praia oblíqua onde estivemos
permanecer no sol foi tudo o que quisemos
Gastão Cruz
A Moeda do Tempo
2006, ed. Assírio e Alvim
desenho de Graça Martins
sobre
Arte,
Gastão Cruz,
Graça Martins,
poemas
quarta-feira, 9 de junho de 2010
The Forge
All I know is a door into the dark.
Outside, old axles and iron hoops rusting;
Inside, the hammered anvil´s short-pitched ring,
The unpredictable fantail of sparks
Or hiss when a new shoe toughens in water.
The anvil must be somewhere in the centre,
Horned as a unicorn, at one end square,
Set there immovable: an altar
Where he expends himself in shape and music.
Sometimes, leather-aproned, hairs in his nose,
He leans out on the jamb, recalls a clatter
Of hoofs where traffic is flashing in rows;
Then grunts and goes in, with a slam and flick
To beat real iron out, to work the bellows.
Seamus Heaney
Door Into The Dark
1969, ed. Faber and Faber
imagem de Henri Cartier Bresson
terça-feira, 8 de junho de 2010
Hipóteses Individuais
Habituo-me, self-service, a fazer da visão
um modo de não ver. Guardo o tédio
como algumas jóias velhas. Talvez um dia,
quem sabe. Às vezes creio que também
sou um filho de Deus, embora nada no
bilhete de identidade ou no ritmo diário
o faça prever. Pressinto, desastrado coração,
que há talvez e que o tédio, afinal,
é tão só um mode de ter e ser dono,
de poder abrir e fechar janelas
como quem fica à espera de que
a insónia dê lugar ao sono. Com essas
manchas de inteligência, com os relâmpagos
dessa lucidez, levanto-me e procuro
um horóscopo diferente, em que ninguém
crê, nem eu. Curiosamente, habituo-me
a morrer como se fosse um café na hora
de fechar: periscas no chão, mesas e cadeiras
-vazias, empilhadas-, uma luz verde
que chega a ser bela quando alguém
acende um cigarro.
Carlos Luís Bessa
Em Partes Iguais
2004, ed. Assírio e Alvim
imagem de Daniel Blaufuks
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Twin Peas: Firewalk With Me de David Lynch
PORQUE A POESIA É MAL AMADA
“Twin Peaks: Firewalk With Me” terá sido dos filmes mais mal recebidos de David Lynch. Aquando da sua estreia, em 1992, foi um fiasco em termos críticos e de audências, se bem que esta última parte não surpreenda, porque os filmes de Lynch nunca foram para o grande público.
Parte do problema, parece-me, terá a ver com o facto de o filme ter surgido demasiado em cima da série. A própria série, depois da descoberta do assassino de Laura Palmer, entrou numa espécie de declínio em termos de opinião dos fãs. Mas o filme foi, de longe, bem mais injustiçado.
É evidente que seria quase impossível produzir um filme que é, para todos os efeitos, uma prequela, para uma peça tão fora de série como a série. E é precisamente no confronto com a série que o filme pode, numa primeira observação, parecer cheio de falhas e resultar mal. Relembremos que o filme é escrito por Lynch e Robert Engels que, mesmo tendo sido argumentista de vários episódios da série, não foi dela um dos criadores: o não-envolvimento de Mark Frost no filme talvez tenha tido também o seu peso.
Ao contrapor a série com o filme vemos de imediato bastantes incongruências: repare-se que no filme, Donna Hayworth assiste a Laura a prostituir-se, chegando a quase fazê-lo ela mesmo, sob o efeito de drogas: ao passo que, na série, esse lado da vida de Laura era totalmente desconhecido de Donna.
A cena do jantar em que Leland Palmer quase agride a filha também não está de acordo com a série pois, como vemos, Sarah Palmer nunca aponta nenhum comportamento estranho de Leland para a filha quando é interrogada pela polícia.
Outro exemplo é o facto de, no segundo dos seus últimos sete dias, Laura Palmer ir deixar o seu diário secreto a casa de Harold Smith. Não a vemos regressar a casa dele (Ela diz, inclusivamente, que poderá não voltar a visitá-lo.), e, na série, Harold deixa, antes de se suicidar, um envelope para Donna onde estão as últimas duas páginas escritas por Laura nesse diário secreto: na véspera da sua morte e no dia da sua morte.
Mais ainda, quando Leland Palmer leva Laura e Ronette Pulaski para o comboio abandonado, Ronette consegue sair antes de Laura morrer e na série, vemo-la ter flashbacks de Laura a ser assassinada.
Parte do problema, parece-me, terá a ver com o facto de o filme ter surgido demasiado em cima da série. A própria série, depois da descoberta do assassino de Laura Palmer, entrou numa espécie de declínio em termos de opinião dos fãs. Mas o filme foi, de longe, bem mais injustiçado.
É evidente que seria quase impossível produzir um filme que é, para todos os efeitos, uma prequela, para uma peça tão fora de série como a série. E é precisamente no confronto com a série que o filme pode, numa primeira observação, parecer cheio de falhas e resultar mal. Relembremos que o filme é escrito por Lynch e Robert Engels que, mesmo tendo sido argumentista de vários episódios da série, não foi dela um dos criadores: o não-envolvimento de Mark Frost no filme talvez tenha tido também o seu peso.
Ao contrapor a série com o filme vemos de imediato bastantes incongruências: repare-se que no filme, Donna Hayworth assiste a Laura a prostituir-se, chegando a quase fazê-lo ela mesmo, sob o efeito de drogas: ao passo que, na série, esse lado da vida de Laura era totalmente desconhecido de Donna.
A cena do jantar em que Leland Palmer quase agride a filha também não está de acordo com a série pois, como vemos, Sarah Palmer nunca aponta nenhum comportamento estranho de Leland para a filha quando é interrogada pela polícia.
Outro exemplo é o facto de, no segundo dos seus últimos sete dias, Laura Palmer ir deixar o seu diário secreto a casa de Harold Smith. Não a vemos regressar a casa dele (Ela diz, inclusivamente, que poderá não voltar a visitá-lo.), e, na série, Harold deixa, antes de se suicidar, um envelope para Donna onde estão as últimas duas páginas escritas por Laura nesse diário secreto: na véspera da sua morte e no dia da sua morte.
Mais ainda, quando Leland Palmer leva Laura e Ronette Pulaski para o comboio abandonado, Ronette consegue sair antes de Laura morrer e na série, vemo-la ter flashbacks de Laura a ser assassinada.
Repare-se que todas estas falhas são apontadas quando confrontadas com a série.
E por um lado, não pode ser de outra maneira: o flme começa com o caso de Teresa Banks, assassinada em Deer Meadow nas mesmas circunstâncias que Laura. A investigação leva ao desaparecimento de Chet Desmond, agende do FBI, que é substituido por Dale Cooper. É público que David Lynch pretendia uma presença mais contínua de Kyle McLachlan no filme, mas este terá recusado, por estar já altamente associado ao personagem de Cooper e, diga-se de passagem, foi o papel da vida dele.
Um ano depois, um detective interpretado por David Bowie aparece no escritório onde trabalham Cooper e Gordon, o cómico e mouco David Lynch, dizendo que esteve “numa das reuniões deles”: “eles” são as figuras do Mal, ou a ele associados, que se reunem numa mesa de fórmica: o liliputiano que se apresentará como “o braço”, deduzimos que o braço amputado de Mike, o braço que matava, Bob e os Chalfut, avó e neto, neto este que estuda magia e usa uma máscara sem orifícios, apenas com um nariz afiado.
A questão de “Twin Peaks: Firewalk With Me” é que talvez não deva ser levado tão à letra numa comparação com a série, ainda que se sirva de todo o imaginário, fortíssimo, criado pela série. Para tal talvez não seja gratuito referir que o filme começa com uma televisão a ser destruída por uma bala. Penso que qualquer interpretação disto dispensa ser escrita, de tão óbvia.
Porque, verdade se diga, se se esquecer estas incongruências com a série, como podemos dizer que este é um mau filme?
Pelo contrário, é um dos melhores e mais bizarros filmes de Lynch, ainda que siga uma estrutura de narrativa linear, cheio de imagens absolutamente poéticas e momentos de uma pungente tristeza a que é impossível ser-se indiferente.
É uma faca de dois gumes este filme: ele tem uma relação inevitável com a série, e isso torna graves as já referidas incongruências, mas, por outro lado, como peça isolada, só pode ser um grande filme.
Encontramos Laura Palmer como a rapariga do coração divdido: ela é a estudante do liceu, raínha do baile que namora com o capitão da equipa de futebol, tem um amante. Por outro lado, é também uma prostituta ocasional, chuta cocaína constantemente, é uma verdadeira viciada, mantém relações com inúmeros homens, e é violada desde os 12 anos por um homem, Bob, um espírito cuja identidade ela não consegue deslindar.
Mas em “Firewalk With Me”, mesmo a questão da possessão de Bob a Leland Palmer quase passa para segundo plano: vemos, angustiadamente, a obcessão de Leland pela filha, a relação incestuosa que existe entre eles.
Há um profundo lirismo neste filme. Mais do que nunca, somos incapazes de sentir que Laura é cruel ou uma perdida. Como poderíamos pensar isso quando a vemos chorar enquanto ouve Julee Cruise no Roadhouse, antes de um cliente vir ter com ela?
É um filme cheio de momentos de um onirismo comovente, profundamente estéticos, como o quadro que os Chalfut oferecem a Laura, e as alucinações que ela tem com ele; ou como o sonho onde Cooper, ao lado do “braço” pede a Laura que não aceite o anel de Teresa, pois que este significará a sua morte.
É aqui, mais do que na sére, que vemos Laura a afundar-se na loucura em que a sua vida se tornou: uma vida errática e destrutiva, de que ela está consciente. E David Lynch filma essa destruição de uma forma tão crua, tão realista, que nos sentimos a cair com Laura Palmer, e lamentamos profundamente o seu final amargo.
Sentimos essa tristeza, como sentimos a confusão de Laura Elena Harring em “Mulholland Drive” ou o desespero de Laura Dern em “INLAND EMPIRE”.
E por um lado, não pode ser de outra maneira: o flme começa com o caso de Teresa Banks, assassinada em Deer Meadow nas mesmas circunstâncias que Laura. A investigação leva ao desaparecimento de Chet Desmond, agende do FBI, que é substituido por Dale Cooper. É público que David Lynch pretendia uma presença mais contínua de Kyle McLachlan no filme, mas este terá recusado, por estar já altamente associado ao personagem de Cooper e, diga-se de passagem, foi o papel da vida dele.
Um ano depois, um detective interpretado por David Bowie aparece no escritório onde trabalham Cooper e Gordon, o cómico e mouco David Lynch, dizendo que esteve “numa das reuniões deles”: “eles” são as figuras do Mal, ou a ele associados, que se reunem numa mesa de fórmica: o liliputiano que se apresentará como “o braço”, deduzimos que o braço amputado de Mike, o braço que matava, Bob e os Chalfut, avó e neto, neto este que estuda magia e usa uma máscara sem orifícios, apenas com um nariz afiado.
A questão de “Twin Peaks: Firewalk With Me” é que talvez não deva ser levado tão à letra numa comparação com a série, ainda que se sirva de todo o imaginário, fortíssimo, criado pela série. Para tal talvez não seja gratuito referir que o filme começa com uma televisão a ser destruída por uma bala. Penso que qualquer interpretação disto dispensa ser escrita, de tão óbvia.
Porque, verdade se diga, se se esquecer estas incongruências com a série, como podemos dizer que este é um mau filme?
Pelo contrário, é um dos melhores e mais bizarros filmes de Lynch, ainda que siga uma estrutura de narrativa linear, cheio de imagens absolutamente poéticas e momentos de uma pungente tristeza a que é impossível ser-se indiferente.
É uma faca de dois gumes este filme: ele tem uma relação inevitável com a série, e isso torna graves as já referidas incongruências, mas, por outro lado, como peça isolada, só pode ser um grande filme.
Encontramos Laura Palmer como a rapariga do coração divdido: ela é a estudante do liceu, raínha do baile que namora com o capitão da equipa de futebol, tem um amante. Por outro lado, é também uma prostituta ocasional, chuta cocaína constantemente, é uma verdadeira viciada, mantém relações com inúmeros homens, e é violada desde os 12 anos por um homem, Bob, um espírito cuja identidade ela não consegue deslindar.
Mas em “Firewalk With Me”, mesmo a questão da possessão de Bob a Leland Palmer quase passa para segundo plano: vemos, angustiadamente, a obcessão de Leland pela filha, a relação incestuosa que existe entre eles.
Há um profundo lirismo neste filme. Mais do que nunca, somos incapazes de sentir que Laura é cruel ou uma perdida. Como poderíamos pensar isso quando a vemos chorar enquanto ouve Julee Cruise no Roadhouse, antes de um cliente vir ter com ela?
É um filme cheio de momentos de um onirismo comovente, profundamente estéticos, como o quadro que os Chalfut oferecem a Laura, e as alucinações que ela tem com ele; ou como o sonho onde Cooper, ao lado do “braço” pede a Laura que não aceite o anel de Teresa, pois que este significará a sua morte.
É aqui, mais do que na sére, que vemos Laura a afundar-se na loucura em que a sua vida se tornou: uma vida errática e destrutiva, de que ela está consciente. E David Lynch filma essa destruição de uma forma tão crua, tão realista, que nos sentimos a cair com Laura Palmer, e lamentamos profundamente o seu final amargo.
Sentimos essa tristeza, como sentimos a confusão de Laura Elena Harring em “Mulholland Drive” ou o desespero de Laura Dern em “INLAND EMPIRE”.
E, mais do que isso, vemos como a destruição de Laura arrasta consigo a destruição de tantos que estavam à sua volta.
Mais do que nunca, a imagem que temos de Laura é de força. Não propriamente a mulher forte que consegue todos os homens que quer e tem prazer nisso. Mas a que se recusa terminantemente a entregar-se ao mal. É aí que ela coloca o anel de Teresa e Bob é obrigado a matá-la. E mesmo aí, é desesperante quando, entre Bob nos surge Leland, que lhe diz que sempre pensou que ela soubesse que era ele que a violava: a questão do incesto é aqui levada a um extremo penoso: Leland, pai, fica triste por ver que a filha não percebia que era ele quem a violava.
Quando por fim ouvimos os gritos finais de Laura e a vemos a ser embrulhada em plástico, temos a maior sensação de estranheza que este filme dá: é que, quando começa, nós já sabemos como irá terminar, com Laura a ser encontrada morta na praia, mas na cena em que está com Bob no comboio abandonado, ficamos de certa forma surpreendidos por ela ser assassinada, como se não estivéssemos à espera que tal acontecesse.
Por fim, há que referir que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não é sempre uma má prequela. Temos cenas que de explicam com toda a perfeição a vida de Laura, a vida que é, lentamente, descoberta por Dale Cooper e Harry Truman ao longo da série. Particularmente pungente é a cena em que Donna pergunta a Laura se ela acha que, numa queda eterna caíria sempre cada vez mais depressa ou se eventualmente abrandaria. Laura responde, num tom sereno mas que resulta angustiante:
“Faster and faster. And there would be no angels to hold you, cause they´re all gone. And for a long time, you wouldn´t feel anything. But then you would burst into flames.”
Com isto percebemos aquilo que, a meio da série, o psiquiatra, Lawrence Jacoby aponta: que Laura já decidira morrer. E estava consciente disso.
É por momentos destes que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não poderia ser um mau filme, apenas incongruente. Mas não está cheio disso o cinema de David Lynch?
Mais do que nunca, a imagem que temos de Laura é de força. Não propriamente a mulher forte que consegue todos os homens que quer e tem prazer nisso. Mas a que se recusa terminantemente a entregar-se ao mal. É aí que ela coloca o anel de Teresa e Bob é obrigado a matá-la. E mesmo aí, é desesperante quando, entre Bob nos surge Leland, que lhe diz que sempre pensou que ela soubesse que era ele que a violava: a questão do incesto é aqui levada a um extremo penoso: Leland, pai, fica triste por ver que a filha não percebia que era ele quem a violava.
Quando por fim ouvimos os gritos finais de Laura e a vemos a ser embrulhada em plástico, temos a maior sensação de estranheza que este filme dá: é que, quando começa, nós já sabemos como irá terminar, com Laura a ser encontrada morta na praia, mas na cena em que está com Bob no comboio abandonado, ficamos de certa forma surpreendidos por ela ser assassinada, como se não estivéssemos à espera que tal acontecesse.
Por fim, há que referir que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não é sempre uma má prequela. Temos cenas que de explicam com toda a perfeição a vida de Laura, a vida que é, lentamente, descoberta por Dale Cooper e Harry Truman ao longo da série. Particularmente pungente é a cena em que Donna pergunta a Laura se ela acha que, numa queda eterna caíria sempre cada vez mais depressa ou se eventualmente abrandaria. Laura responde, num tom sereno mas que resulta angustiante:
“Faster and faster. And there would be no angels to hold you, cause they´re all gone. And for a long time, you wouldn´t feel anything. But then you would burst into flames.”
Com isto percebemos aquilo que, a meio da série, o psiquiatra, Lawrence Jacoby aponta: que Laura já decidira morrer. E estava consciente disso.
É por momentos destes que “Twin Peaks: Firewalk With Me” não poderia ser um mau filme, apenas incongruente. Mas não está cheio disso o cinema de David Lynch?
sábado, 5 de junho de 2010
Chazada
Solta-se da boca a gravata gangrenada,
no finca-pé se trabalha a infância
mártir por despeito; preferias viajar
como um móvel que sai de casa desmontado.
A mó que vive encostada
numa claridade de muros que só prometida pelos mortos
assim me é o fundo secreto dos teus olhos; e o aperto
de mãos que lá ficou.
Passeamos nos planos duma fortificação
um lanço de escadas devolve-nos à ideia de lar
às dívidas alegres; solta-se a ponta
da língua porque o futuro não dirá.
Regina Guimarães
Anelar, Mínimo
&etc, 1985
imagem de Matthew Barney
sobre
Matthew Barney,
poemas,
Regina Guimarães
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Agustina tem destas Coisas (13)
Um homem de trinta anos que chora, ou é um imbecil ou é um poeta; a menos que uma dessas razões que desabam como uma avalanche sobre os temperamentos mas imutáveis venha convulsionar-lhe a alma, arrancando dela as emoções mais terríveis.
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De “A Sibila”
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De “A Sibila”
terça-feira, 1 de junho de 2010
um poema
Não conhecia a noite povoada
Não conhecia a noite
cheia por dentro de espaços
e de tempos
Não conhecia a noite
andando primeiro pela estrada
e andando depois por um caminho
Não conhecia a noite
dos corpos sem amor
em êxtase de pé
devagarinho
Yvette K. Centeno
Poemas Fracturados
1967, Guimarães editores, colecção Poesia e Verdade
desenho de Sadsamson
sobre
Desenhos,
poemas,
Yvette K. Centeno
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