OLD SCHOOL REMEDIES
Vergonha ou não, só agora li “Lunário”, obra em prosa escrita em 1988 pelo por norma poeta Al Berto. Confesso que nunca senti grande atracção pela obra deste escritor, por me ter cruzado com vários poemas em que o espectáculo parecia sobrepôr-se ao conteúdo.
No entanto, renego completamente esta visão, pelo menos no que toca a “Lunário”.
É uma história de solidão, acima de tudo. Inevitavelmente passa pelo amor, mas o que “Lunário” realmente tem de bom e o que lhe confere uma excelente carga emotiva, é a sensação de deserto interior, que se encontra, por exemplo, em alguns poemas de António Ramos Rosa, ou, porque não, nalguns poemas de Al Berto.
Vergonha ou não, só agora li “Lunário”, obra em prosa escrita em 1988 pelo por norma poeta Al Berto. Confesso que nunca senti grande atracção pela obra deste escritor, por me ter cruzado com vários poemas em que o espectáculo parecia sobrepôr-se ao conteúdo.
No entanto, renego completamente esta visão, pelo menos no que toca a “Lunário”.
É uma história de solidão, acima de tudo. Inevitavelmente passa pelo amor, mas o que “Lunário” realmente tem de bom e o que lhe confere uma excelente carga emotiva, é a sensação de deserto interior, que se encontra, por exemplo, em alguns poemas de António Ramos Rosa, ou, porque não, nalguns poemas de Al Berto.
Um abandono curado com sexo, com droga, com álcool, enfim, old-school remedies. Homossexual assumidíssimo, Al Berto é, no entanto, dos que não se pode queixar que a imagem dos homossexuais é denegrida, uma vez que ele próprio faz a descrição de um ambiente em tudo decadente.
Mas, concretamente sobre a história de “Lunário”, nada nela é particularmente inovador, o que não implica que o livro seja mau, que não é. É, parece-me, um relato acima de tudo emocional e bem conseguido, pois, em vez de ceder à ideia de uma amor gratuito, Al Berto mostra-nos como nada é suficiente para encher a solidão de Beno, o personagem que vamos seguindo. É seguindo-o que vamos encontrando o ambiente da noite onde todos se vão deixando morrer aos poucos, os engates de rua, a fácil morte de quem lhe é próximo, e, essencialmente a perda.
Encontramo-lo algures numa fase em que vagueia por um país, só sentado num quarto de pensão. Adormece e vai desenrolando o seu drama pessoal: memórias da mulher com quem viveu e viajou e teve um filho, Alba; de Nému, um rapaz que conhece e de quem nunca chega a saber o verdadeiro nome, apesar de terem vivido juntos vários anos; de Kid, uma espécie de travesti cuja personalidade, ao mesmo tempo que funde o masculino e o feminino, funde a vida e a morte; de Zohía, com as suas alucinações que acabam por levá-la a um hoospício; de Alaíno, companheiro de Zohía, que acaba por ter que lidar com a “morte” metafórica da companheira; de um casal que gostava de assaltar casas apenas para ter sexo em camas alheias.
Uma espécie de odisseia invertida. Em vez de uma aventura é mesmo uma desventura, porque, por mais que possa encontrar alguma estabilidade, a vida de Beno caminha sempre para uma espécie de perdição, de vazio, de solidão com o corpo. Aliás, o narrador diz-nos, logo no princípio, “o corpo magro que transportara de um lado para o outro, sem descanso, fora sempre a sua única morada.” (pag.18). Como todos nós, de resto.
Inevitável, no entanto, entre tudo isto, é tirar-se uma leitura possivel, que não deixa de ser um tanto desagradável por ser moralista: pode este deserto ser um “castigo” de Beno por ter levado uma vida em que, nas palavras do próprio, não teve medo de si mesmo? Al Berto não é muito claro nisso. Somos tentados a seguir a ideia de que Beno é um sujeito que não pode existir a não ser no deserto, mas tal é apenas deixado implícito.
Talvez não seja muito exacto falar de “deserto” acerca de Beno, ou de toda a ambiência de “Lunário”. Não é exactamente um deserto, porque a vida deste personagem é construída sobre um vai-e-vem de pessoas: chegam e, conforme chegam, acabam por partir, por se perder de alguma forma.
E Al Berto é realmente muito verista no relato da tristeza e do isolamento que tudo isto causa no interior do seu personagem. Estamos, parece-me, perante uma obra em que a ficção e a auto-biografia se misturam consideravelmente.
Também de destacar é a capacidade descritiva, tanto de elementos psíquicos como físicos que o autor revela.
Mas, concretamente sobre a história de “Lunário”, nada nela é particularmente inovador, o que não implica que o livro seja mau, que não é. É, parece-me, um relato acima de tudo emocional e bem conseguido, pois, em vez de ceder à ideia de uma amor gratuito, Al Berto mostra-nos como nada é suficiente para encher a solidão de Beno, o personagem que vamos seguindo. É seguindo-o que vamos encontrando o ambiente da noite onde todos se vão deixando morrer aos poucos, os engates de rua, a fácil morte de quem lhe é próximo, e, essencialmente a perda.
Encontramo-lo algures numa fase em que vagueia por um país, só sentado num quarto de pensão. Adormece e vai desenrolando o seu drama pessoal: memórias da mulher com quem viveu e viajou e teve um filho, Alba; de Nému, um rapaz que conhece e de quem nunca chega a saber o verdadeiro nome, apesar de terem vivido juntos vários anos; de Kid, uma espécie de travesti cuja personalidade, ao mesmo tempo que funde o masculino e o feminino, funde a vida e a morte; de Zohía, com as suas alucinações que acabam por levá-la a um hoospício; de Alaíno, companheiro de Zohía, que acaba por ter que lidar com a “morte” metafórica da companheira; de um casal que gostava de assaltar casas apenas para ter sexo em camas alheias.
Uma espécie de odisseia invertida. Em vez de uma aventura é mesmo uma desventura, porque, por mais que possa encontrar alguma estabilidade, a vida de Beno caminha sempre para uma espécie de perdição, de vazio, de solidão com o corpo. Aliás, o narrador diz-nos, logo no princípio, “o corpo magro que transportara de um lado para o outro, sem descanso, fora sempre a sua única morada.” (pag.18). Como todos nós, de resto.
Inevitável, no entanto, entre tudo isto, é tirar-se uma leitura possivel, que não deixa de ser um tanto desagradável por ser moralista: pode este deserto ser um “castigo” de Beno por ter levado uma vida em que, nas palavras do próprio, não teve medo de si mesmo? Al Berto não é muito claro nisso. Somos tentados a seguir a ideia de que Beno é um sujeito que não pode existir a não ser no deserto, mas tal é apenas deixado implícito.
Talvez não seja muito exacto falar de “deserto” acerca de Beno, ou de toda a ambiência de “Lunário”. Não é exactamente um deserto, porque a vida deste personagem é construída sobre um vai-e-vem de pessoas: chegam e, conforme chegam, acabam por partir, por se perder de alguma forma.
E Al Berto é realmente muito verista no relato da tristeza e do isolamento que tudo isto causa no interior do seu personagem. Estamos, parece-me, perante uma obra em que a ficção e a auto-biografia se misturam consideravelmente.
Também de destacar é a capacidade descritiva, tanto de elementos psíquicos como físicos que o autor revela.
4 comentários:
Acima de tudo admiro a integridade e a verdade numa pessoa.
Al Berto foi essa pessoa até ao fim. Fica a sua obra como testemunho, neste Portugal demasiado pequeno e, com tendência para queimar pessoas na fogueira, ainda e no sec. XXI.
concordo plenamente.
Ola', cheguei por caso no teu blog. Conheço bastante bem a obra de Al Berto, traduzi Lunario para italiano e fico sempre muito contente que a obra dele tenha mais leitores.
Gostei da tua leitura e concordo com Sleeping Beauty: Al Berto foi de uma integridade e de uma verdade comovedoras. Lunario é sim uma desaventura, mas também uma viage de (auto)descoberta dolorosa, um percurso catartico, de despojamento. Eu via-o antes como uma evocaçao e depois uma invocaçao, para o Amor dos mais puro, que alguém pode obter quando se conhecer no fundo e se despojar de tudo aquilo que o faz aceitar até a solidao mais dura e desertica. A obra dele é das coisas mais bonitas que encontrei em Portugal. Continuem a pensar nele quando puderem
Obrigado Valéria, pelas suas palavras, e parabéns por ter traduzido um livro destes!
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