sábado, 26 de setembro de 2015

Outrebleu/ Outremer (2)


Nunca mais nada
será como dantes.
Eis-nos enfim de visita
ao lugar que não havia
onde as árvores se abraçam
até à  nossa asfixia.

Regina Guimarães
Outrebleu/ Outremer
2010, ed. Hélastre
pintura de Michele del Campo

domingo, 12 de julho de 2015

The Inner or Deep Part of an Animal or Plant Structure




Documentário sobre a produção de «Medúlla», o álbum de 2004 de Björk. Mal recebido na altura, talvez agora possamos retomá-lo. Quase inteiramente vocal, «Medúlla» é um exercício magnífico de diálogo entre a identidade individual e a natureza, entre a civilização e as sobrevivências arcaicas.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Street song


I am too young to grow a beard
But yes man it was me you heard
In dirty denim and dark glasses.
I look through everyone who passes
But ask him clear, I do not plead,
Keys Lids acid and speed.

My grass is not oregano.
Some of it grew in Mexico.
You cannot guess the weed I hold,
Clara Green, Acapulco Gold,
Panama Red, you name it man,
Best on the street since I began.

My methedrine, my double-sun,
Will give you too lives in your one,
Five days of power before you crash.
At which time use these lumps of hash
- They burn so sweet, they smoke so smooth,
They make you sharper while they soothe.

Now here, the best I've got to show,
Made by a righteous cat I know.
Pure acid - it will scrape your brain,
And make it something else again.
Call it heaven, call it hell,
Join me and see the world I sell.

Join me, and I will take you there,
Your head will cut out from your hair
Into whichever self you choose.
With Midday Mick man you can't lose,
I'll get you anything you need.
Keys lids acid and speed.

Thom Gunn
Collected poems
ed. Farrar, Straus and Giroux, 2005

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Notas sobre «Why bodies matter» de Judith Butler




Judith Butler é, sem dúvida, um dos nomes essenciais para o estudo do género desde a publicação do seu primeiro livro importante, «Gender Trouble», em 1990, que, sozinho, constitui praticamente a matriz da teoria queer.
Ontem, e no contexto do ciclo de conferências e actividades também chamado «Gender Trouble», Judith Butler deu uma conferência no Teatro Maria de Matos (Lisboa), com um título adaptado do do seu segundo livro, «Bodies that matter».
A conferência, intitulada «Why bodies matter», teve cerca de uma hora, e mostrou uma nova Judith Butler, se tivermos em conta os seus livros, mas particularmente o primeiro e mais influente.
Judith Butler é uma descendente directa do pós-estruturalismo francês. O seu primeiro livro é construído com base em leituras de Michel Foucault, de Jacques Derrida e de Jacques Lacan. É logo por aí que começam os problemas de Butler. A sua teoria, que conflui na ideia de uma 'performatividade de género', é alimentada essencialmente por pensadores cujo trabalho é deficiente, questionável e baseado em especulação linguística mais do que em factos ou no registo histórico. O pós-estruturalismo alimentou-se fortemente da linguística estrutural de Ferdinand de Saussure, esquecendo que esse modelo já havia sido abandonado pelos próprios linguistas, que haviam avançado para novas teorias, a partir do trabalho do americano Noam Chomsky. Foucault como pensador político, Derrida como teórico literário e Lacan como analista dos problemas da mente legaram-nos obras extensas mas cuja solidez está hoje, com razão, largamente questionada. O problema central, herdado por Butler, é o seu excesso de confiança na linguagem, e mais ainda, numa ideia de linguagem hoje tida como pura e simplesmente errada. A obra de Foucault consiste em ideias decalcadas de Durkheim e Max Weber (dívidas muito raramente assumidas) e em radicalismos questionáveis contra o poder político. Derrida, com a sua desconstrução, criou um método para a destruição do discurso por contradição, cuja única saída é a aniquilação. Lacan, abandonado por praticamente pela psicanálise, exagerou largamente o papel da linguagem na formação da psicologia, um erro que já Freud havia cometido, mas de forma menos alargada.
Butler não escapa a estes problemas quando escreve «Gender trouble». Duas outras referências essenciais surgem também no livro, Freud e Lévi-Strauss, mas também eles lidos com pouca exactidão, de forma muitíssimo interpretativa e, não raras vezes, citados como se afirmassem exactamente o contrário daquilo que afirmavam.
A ideia essencial que origina a 'performatividade do género' é que não só o género é socialmente construído, como o próprio sexo é socialmente construído. Esta negação completa de qualquer presença da biologia na formação da identidade de género e da identidade sexual foi talvez o que mais polémico o livro de Butler afirmou. Freud certamente não pensava assim: pelo contrário, a sua ideia era a de que o homem civilizado existe sobre o homem-animal. E basta ler os primeiros dois capítulos de «As estruturas elementares do parentesco» de Lévi-Strauss para perceber que, para o antropológo, natureza e cultura constituem um diálogo, não uma substituição. A ideia de que o género é uma construção cultural não era nova, nem é infrequente. O que Butler teve de novo foi negar o próprio precedente natural do sexo, negando, por assim dizer, que o próprio corpo tenha algum tipo de interferência na constituição da identidade sexual e de género. 
A teoria teve grande impacto na academia, mas o seu contributo para a expansão do feminismo foi pouco significativa. Pelo contrário, Butler faz parte da geração que transformou o feminismo numa ideologia ostracizada por muitas mulheres, particularmente as mais jovens, um problema largamente analisado por Christina Hoff Sommers.

Na sua conferência, Butler pergunta-se se o seu trabalho terá de alguma forma mudado. Efectivamente mudou. O que mais impressionou na conferência de Butler foi como, vinte e cinco anos depois, uma hora de conferência parece ser mais relevante e mais intensa do que o díptico «Gender Trouble» - «Bodies that matter». 
A razão será simples. O discurso sobre o género pareceu, em vários momentos, ficar para segundo plano, enquanto Butler sentiu necessidade de se falar da situação das democracias ocidentais,da falta de reconhecimento político para muitos problemas, e de especificar esses problemas: não apenas ligados ao sexo e ao género, mas também ao trabalho, às condições de vida e aos direitos essenciais dos cidadãos.
Talvez a actual conjuntura política e económica tenha alimentado o pensamento de Butler com uma espécie de banho de realidade. E isso justifica, sem dúvida, o discurso de alguma forma alterado que a autora apresentou ao longo de uma hora.
Como as respostas às perguntas no final deixaram claro, as posições de Butler sobre sexo e género não se alteraram muito significativamente, mas é de notar que, de alguma fora, o seu discurso parece ter-se moderado ou, se preferirmos, ter-se tornado mais realista. Aliás, mesmo durante a própria conferência, Butler fez questão de se demarcar de algumas ideias que lhe estão associadas. De facto, a conferência é um bom sinal para Judith Butler, mas não necessariamente um bom sinal para a teoria que ela ajudou a criar, a teoria queer. Isto foi particularmente claro quando Butler insistiu que a sua teoria da 'performatividade de género' não visava criar nenhuma hierarquia, nem classificar nenhum tipo de 'género' como reaccionário, nem tornar uns mais válidos ou correctos em relação aos outros. Isto foi particularmente importante. Talvez não Butler, mas certamente muitos dos seus leitores e dos académicos que lhe seguiram as pisadas, souberam usar a teoria queer como forma de incitar a uma misandria pouco assumida, e a apresentar os modelos mais tradicionais de masculino e feminino como formas de conservadorismo e mesmo de opressão. Que Butler tenha sentido necessidade de se demarcar destas ideias é significativo.
Mas o que mais impressionou foi como, finalmente, Butler se apresentou livre daquela espécie de miopia do género, que tornou, durante muito tempo, o seu discurso irrealista. Comparativamente a «Gender Trouble», o livro, esta conferência pareceu inteligente, oportuna, assertiva, focada e efectivamente útil para pensar a realidade actual.
Já menos interessada em negar a biologia, Butler afirmou o género como uma construção é certo, mas uma construção baseada em relações, enfatizando como essas relações podem ser usadas, e de que forma, nalguns países do mundo, são proibidas. Ao fazê-lo, Butler teceu um discurso lúcido e acertado sobre a política actual, e conseguiu afastar-se da paranóia foucaultiana (que apesar de tudo teve lugar no final, aquando das perguntas). E talvez fosse desse mesmo confronto com a realidade que a teoria de Butler carecia. No fundo, o que a autora fez, dando um verdadeiro passo em frente no seu próprio pensamento, foi apresentar o género não como algo que nos define (como pretendia Foucault), mas como algo que nos caracteriza, de todo um conjunto de outras caracterizações. 
É de notar que a teoria de Butler continua a não saber alimentar-se sempre das melhores fontes. A sua análise das democracias continua um tanto marcada pelos excessos pós-estruturalistas, e Butler continua convencida de que há uma espécie de perversão do poder que justifica a falta de visibilidade das minorias. Conquanto este ponto de vista possa ser defensável, é igualmente verdade que sabemos, pelo menos desde Durkheim e de todos os antropólogos e sociólogos da escola funcionalista, que as próprias sociedades são organismos essencialmente conservadores, e que fazem, colectivamente, um esforço por se reproduzirem iguais a si mesmas no tempo.
Ao introduzir, discretamente, alguns conceitos marxistas no seu discurso, no entanto, Butler demonstrou que a alteração à estrutura social é, de facto, possível, mas que marca um esforço tanto dos indivíduos como das próprias instituições, algo que pareceria impossível quando se lia «Gender trouble».
De facto, o género e a sexualidade não são as únicas categorias a partir das quais um indivíduo pode ser 'marginalizado'. Nesse sentido, a integração destas questões num conjunto mais alargado era um dos elementos que faltava a Butler, e também a forma que, na conferência, a autora encontrou para chegar ao cerne da questão: o problema da liberdade e da individualidade no seio das nossas sociedades de contrato.
É verdade que muitas das leituras do próprio corpo que Butler apresentou careceram de explicações mais profundas (um problema recorrente na sua escrita, como Martha Nussbaum já assinalou), mas, no geral, entendendo o corpo como matéria que só é válida socialmente quando em relação com os outros, Butler mostrou-se muitíssimo mais realista e informada do que nas ideias um tanto vagas que marcaram os seus primeiros livros.
É de assinalar que, além do género, Butler tem tido extensiva participação na discussão de assuntos políticos, e particularmente na política israelita. Sendo judia, mas não sionista, Butler tem tido uma intervenção racional, ponderada e organizada sobre as políticas de Israel. Esta conferência marca, no fundo, uma fusão mais perfeita entre a comentadora política e a estudiosa do género. O que faltava numa teoria como a de Butler era menos especulação sobre 'performatividades' que, no fundo, se esgotavam no seu próprio carácter pouco operante, e compreender o género no contexto dos grandes problemas da democracia e da afirmação individual.
O problema de Judith Butler será sempre a crença de que, a partir da linguagem, é possível compreender tudo. A experiência, no entanto, não está limitada à linguagem, nem o próprio pensamento está limitado à linguagem como pretendia Saussure. A conferência de ontem, discretamente, mostrou uma Judith Butler que olha, finalmente, para lá da linguagem. Ouvi-la falar de matéria, de corpo e de relações políticas, entendendo-as como categorias sociológicas e como manifestações culturais (e não só como entidades discursivas) tornou o seu discurso numa versão melhorada da sua teoria. Porque, nisso ao menos, Butler esteve sempre certa: o espectro daquilo que consideramos 'válido' precisava de ser alargado. Mas não será todos os dias que temos a oportunidade de ver um pensador reavaliar a sua própria teoria e, de certa forma, recomeçar essa teoria. A conferência de ontem foi, em certo sentido, exactamente isso.
É possível que a crítica alargada que se elaborado sobre o pós-estruturalismo nos últimos anos esteja finalmente a afirmar-se. Em Portugal, esse não é certamente o caso, mas vai acontecendo noutros países, e certamente nos Estados Unidos, de onde Judith Butler vem. Será possível que a própria autora tenha percebido as limitações do método que, inicialmente, a orientou? «Why bodies matter» dá algumas indicações claras de que esse é o caso, felizmente.

sábado, 18 de abril de 2015

Começo


Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história - à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral
A Super-Realidade (1995)
in «Morada»
ed. Assírio e Alvim, 2015
fotografia de Nikos Stamatopoulos

domingo, 12 de abril de 2015

Desabafo



Quando o meu tumulto recrudesce
(tempestade de água num copo)
o meu interior tumulto,
de que me escapa a profunda causa...

Quando falo
e as minhas próprias palavras,
por inúteis,
me espantam e me cansam...

Quando a moral dos outros
me traça à frente
o ridículo sulco dos limites...

Deponho as minhas armas boas ou fracas e rio.
Rio com amargor
e como o vento torço o rumo.

Limites...
Para o coração que tumultua, bofetada.
Para a livre imaginação, queda
Cinza,
cinza atirada àquele quê,
àquele quê nada expansivo e imenso,
ardente e infinito
de um pobre espírito.

Como o vento torço o meu rumo gritando:
Ó lar, ó lar das minhas esperanças!
Ó acolhida dos sem pátria e sem destino!

Risco baço dos meus limites, galguei-te.
Sim, galguei-te.
E perco-me no meu corcel de vento,
infeliz e irritada.

Mas para calar toda esta ansiedade
e, ai!
abafar o meu desprazer,
só alcançando as estrelas,
ultrapassando-as
e desaparecer...

Meu coração inchado rebenta, rebenta!
E tu gasta-te, saudade,
desejo, desespero, paixão do que sonhei

e sempre tive de perder.

Irene Lisboa
in «Seara Nova», 1939
imagem de Miguel Leal

sábado, 14 de março de 2015

Ausência cinco



Tua carne sai do ventre dos guindastes que procuras,

trazes na mão as folhas que moem esta ternura
morta
e é lá que os dias se levantam
na cor que escolheste para morreres
junto ao meu corpo incinerado e calmo.

Sinto que meu cansaço é macio
como as noites de diamantes tumultuosos.

Tu encontravas pequenas caixas intercalares,
a mim nasciam-me insectos sedentos de luz,

bania-me no espaço rudimentar deste peito lateral
até que nas manhãs após teu coito

teus véus se construíam em direcção aos elementos.

Jaime Rocha
Beber a cor
1983, ed. &etc
pintura de Graça Martins

terça-feira, 3 de março de 2015

Cinco novas bandas (parte 4)

(Parte 1: ler aqui)   (Parte 2: ler aqui)   (Parte 3: ler aqui)

Um pensador desiludido e sem esperança como E.M. Cioran pôde reconhecer com bastante acuidade que [n]ous devons la quasi-totalité de nos découvertes à nos violences, à l'exacerbation de notre déséquilibre*. Ao reconhecer a violência como móbil da actividade humana (e consequentemente, da actividade criativa), Cioran atribui-lhe um valor edificante que, em muito, não pode ser negado. Sem discórdia, não há evolução nem revolução. O rock reconhece esta violência. O que ele pressupõe é uma experiência profunda do mundo, que é depois transformada em música. Por isso as grandes canções rock se fazem a partir da agressividade, da raiva, da violência, da angústia, da luxúria: trata-se de reconhecer que vamos à descoberta do mundo através de uma experiência aprofundada da nossa violência.
As páginas do ensaio Penser contre soi podem constituir uma explicação bizarramente verosímil da estrutura básica do rock enquanto género. A expressão extrema pressupõe uma experiência extrema do mundo, uma pesquisa por aquilo que de mais elementar e incontrolável existe na natureza e na consciência humana. Ao ler certas páginas mais angustiantemente realistas de Cioran, não é difícil imaginá-lo a ouvir uma banda como as referidas acima. Aliás, estando em causa essa experiência violenta e derradeira da consciência, não seria estranho dizer que Cioran, bem como Nietzsche, Sade, Kafka, Artaud, Lovecraft, Edvard Munch, Hans Bellmer, Michelangelo ou Caravaggio, se vivessem nos dias de hoje e fossem músicos, estariam provavelmente numa banda de rock. Os seus inquéritos aos estados últimos da consciência deixam-nos estranhamente próximos do trabalho dos melhores músicos rock. Porque esse inquérito é o que o rock tem de mais elementar, e é esse também o seu maior perigo. Encontramos em Cioran: La formule de l'enfer? C'est dans cette forme de révolte et de haine qu'il faut la chercher, dans le supplice de l'orgueil renversé, dans cette sensation d'être une térrible quantité négligeable, dans les affres du «je», de ce «je» par quoi commence notre fin**.
De acordo com isto, o que fica claro é que não outra saída para a experiência realista e profunda do mundo senão a própria violência. Mas, nessa violência, esconde-se igualmente a nossa aniquilação, a possibilidade de encontrar o inferno. O rock reconhece sempre o risco da anulação do próprio «eu», que é o perigo de ir longe demais no conhecimento do mundo e de si mesmo, e de ser incapaz quer de regressar a um estado de inocência ignorante, quer de sobreviver àquilo que encontrou.
Mas nesse sentido, nenhum género tem uma valência tão filosófica e antropológica quanto o monosprezado rock. Só ouvido «de fora», ou então pela estirpe exclusivíssima e mui cultivada dos nossos intelectuais da alta cultura (altíssima até!) o rock parecer um género de 'gente a gritar com guitarras eléctricas estridentes atrás'. 
Perante qualquer canção de uma das cinco bandas de que falei, corremos o risco de ver ruir a barreira que nos separa da realidade e de perdermos a ilusão de um mundo que é ainda capaz de se equilibrar. Há algo de sagrado na ilusão que nos mantém sãos. Sãos, mesmo que iludidos: este podia ser o lema da nossa hipermodernidade (como lhe chama Lipovetsky) .
Mas, utilizando um verso de Coraline dos Ash is a Robot, we are crashing waves on sacred ground. E essa coragem não será necessariamente extensível a todos. Por outro lado, assume Cioran, [s]euls nos séduisent les espirits qui se sont détruits pour avoir voulu donner un sens à leur vie***. Porque só com esses aprendemos a procurar (mesmo que não encontremos) uma saída, ou a tentar diminuir a distância entre essa sagrada ilusão e a temível realidade.

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*Cioran, E.M. (1956). La tentation d'exister. Ed. Gallimard, Paris, 2011. p.9
**Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.22
***Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.24
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Cinco novas bandas (parte 3)

(Parte 1: ler aqui)    (Parte 2: ler aqui)

Um dos subgéneros do rock, que sofre influências directas do punk, do grunge e de algum metal, tem sido particularmente prolífero nos últimos anos. O que este subgénero parece compreender melhor é uma energia frenética associada à revolta e à tristeza. É uma espécie de avesso da realidade, uma versão interiorizada das situações mais penosas do dia-a-dia, o lado da vontade, em oposição ao lado do comportamento correcto. The greatest rock creations have come out of lust and agression, diz-nos Camille Paglia*. Esta variante específica do rock parece estar de acordo. Daí que seja ruidosa e alta, que assuma uma certa guturalidade e uma visceralidade muito contrárias àquilo que seria socialmente tolerável e aceitável. Esta é a música pré-civilizada, a expressão sorridente e trocista do que subsiste da natureza do ser humano, o pièce-de-resistence das ideias de Hobbes, Nietzsche, Freud e da própria Paglia sobre natureza e cultura. Nessa regressão, o que nos é devolvido é mais real e mais palpável do que todas as concepções sociais que nos possam ser incutidas. Aqui não há espaço para a restrição e a imposição civilizacional. As bandas que fazem este tipo de música dão-nos a besta humana libertada finalmente. A energia fortíssima que atingem é, por isso, uma energia adversária, combativa e revolucionária, sem a qual nenhuma sociedade deveria existir.


É esse o caso da banda belga The Black Box Revelation (BBR), originária da cidade flamenga de Dilbeek. Desde 2007, a dupla formada por Jan Paternoster (voz e guitarra) e Dries Van Dijk (bateria) lançou dois EP, 'Introducing The Black Box Revelation' (2007) e 'Shiver of Joy' (2011) e três álbuns, 'Set your head on fire' (2007), 'Silver threats' (2010) e 'My perception' (2011).
Num registo mais agressivo e descomplexado, com referências ao rock psicadélico e ao blues, os BBR trazem qualquer coisa que por vezes relembra vagamente a fase inicial dos Pearl Jam, mas absorve também Jimi Hendrix, os White Stripes (também eles constituídos por um vocalista/guitarrista e uma baterista), os Black Lab ou mesmo os Pink Floyd ou ainda a rouquidão pesada de uma Janis Joplin. Este tipo de mistura não é estranha àquilo que fazem, neste momento, outras bandas, começando pelos Black Keys ou os We are the ocean. Mas o que os BBR têm que parece não ser tão claro noutras bandas (e particularmente nos sobrevalorizados Black Keys) é a capacidade de recriar toda uma atmosfera em que a restrição e a rejeição veemente dessa restrição soam de uma forma bastante intensa. Os BBR têm pouco dos Nirvana, mas partilham com a banda de Kurt Cobain um certo ambiente ao qual o ouvinte é remetido. Ouvindo as canções ora enérgicas e explosivas (como I think I like you, o magistral High on a wire, Cold cold hands, Set your head on fire, Run wild ou Madhouse) ora tensas e contemplativas (2 young boys, Sleep while moving ou Never alone always together) não é difícil colocarmo-nos a nós mesmos numa pequena cidade-dormitório flamenga à saída de Bruxelas, um lugar pequeno cuja potencial calma é contrabalançada por um peso excessivo sobre a liberdade dos indivíduos. 



A música dos BBR parece emergir da necessidade de expressão, da necessidade de movimento. Os solos de guitarra eléctrica que pontuam grande parte das canções são como derivas, agitações interiores que funcionam como um terramoto na quietude de onde surgem, um teste aos limites da consciência. A alternância, em todos os álbuns, entre canções de rock puro e duro e outras mais melódicas e pausadas mantém presente uma dicotomia que cria bissectrizes ou mesmo oposições: eu vs. o mundo; explosividade vs. contenção; acção vs. meditação.
Há, por isso, uma certa espessura, uma certa tridimensionalidade na música dos BBR, que parece ser uma forma de sinceridade mais do que uma premeditação. Nas letras, essa ideia confirma-se. Muitas delas são marcadas por uma vontade de evasão sem destino (High on a wire, Sleep while moving) justificada por um ressentimento quanto ao lugar onde se existe (Sealed with thorns, Shadowman, Our town has changed for years) ou por um romantismo que, sendo desencantado, não é inteiramente derrotista (Love Kicks, I think I like you, Bitter). Jan Paternoster, como autor de letras, várias vezes fica a dever pouco a poetas contemporâneos: pelo contrário, as suas letras são imaginosas sem esquecerem a escrita de canções clássicas para o género.
Há ainda que assinalar que, de álbum para álbum, os BBR têem-se mostrado capazes de amadurecer e de equilibrar de uma forma mais subtil e densa as duas linhas de força que se encontravam mais polarizadas em 'Set your head on fire'. Por outro lado, o LP mais recente, 'My perception' aposta também numa vertente um pouco mais experimental, liga ao rock progressivo, o que é bastante claro no som estranho de 2 young boys ou na energia estranhamente sensual e sinistra de Skin.


A banda portuguesa Ash is a Robot (AIAR) recebe algumas influências que podemos também ligar ao punk e ao metal. Reviver estas tendências, como aprendemos com os Green Day, é uma ideia que fica gasta rapidamente. No caso dos AIAR, no entanto, a fusão entre o punk (ou pós-punk) de bandas como os Mars Volta, os Led Zeppelin, os Sonich Youth ou os Big Black, e o rock musculado dos Nine Inch Nails (sem a electrónica), dos Mastodon, de Marilyn Manson ou dos Tool, é tão extrema que se torna fantasmática. Há qualquer coisa muito reconhecível, muito familiar, na música dos AIAR, ao mesmo tempo que se torna extremamente difícil explicitamente saber de onde vem essa familiaridade, porque o som desta banda soa verdadeiramente puro e, paradoxalmente, novo.
Originária de Setúbal, a banda formada por Cláudio Aníbal (voz), Francisco Caetano (voz e guitarra), Renato Sousa (voz e guitarra), Bernardo Pereira (baixo) e Gonçalo Santos (bateria) editou nos últimos dois anos vários singles que por fim convergiram no álbum 'Ash is a robot' (2013).
Aquilo que ouvimos nos AIAR é menos atmosférico e mais intimista. O recurso ao metal traz consigo os resíduos de uma espécie de força natural demoníaca (que encontra na voz de Cláudio Aníbal uma expressão bastante perfeita) que é contraposta não pela complexidade barroca do gothic ou mesmo do black metal, mas antes por uma sonoridade mais suja que parece mais improvisada e mais linear. Sendo uma banda em que encontramos uma certa maturidade (relembre-se que quase todos os elementos da banda passaram por outros projectos previamente), o formato que por vezes nos remete para o rock de garagem não deixa de soar como uma auto-interpretação bastante irónica.
Se Coraline ou Karma never sleeps se fazem valer de um esquema aparentemente arbitrário entre a raiva e a meditação em voz alta, Philophobia (nas suas duas partes) ou Ariadne são exemplos de canções que alternam entre uma explosividade sólida e uma guturalidade torturada, como se Cthulhu tivesse conhecido a linguagem.



Disse acima que a música dos AIAR é menos atmosférica do que intimista, mas ela pressupõe, como não poderia deixar de ser, um determinado ambiente, que é, na música, mais sugerido do que declarado (apesar de ser confirmado pelas letras, particularmente a de Karma never sleeps). Numa expressão tão descontrolada, é impossível não imaginarmos uma espécie de raiva a partir da qual floresce a raiva que caracteriza a música. Essa atmosfera é possivelmente muito própria das cidades próximas de grandes centros urbanos ou mesmo de capitais. Em Portugal, Lisboa nunca foi capaz de criar uma banda rock verdadeiramente densa. O facto dos AIAR virem de Setúbal, cidade de uma personalidade muito marcada, associada a todo um contexto político, laboral e social de resistência muito stand your ground, talvez explique um pouco aquilo que ouvimos na música da banda. As próprias letras não passam ao lado de uma consciência politizada (mais do que declaradamente política), que é notória em Something something dark side ou em Karma never sleeps, e de uma insubmissão que é a única saída lógica para a própria estrutura das canções e do esquema instrumental, todo ele desmedido e fugidio.

(Parte 4: ler aqui)

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Cinco novas bandas (Parte 2)

(Parte 1: ler aqui)

O percurso dos Anathema tem sido de alguma forma discreto no contexto do rock dos últimos anos, mas o seu estatuto de banda de culto dever-se-à, entre outros aspectos, ao facto de terem atravessado de forma exemplar uma espécie de progresso que outras bandas não tiveram a capacidade de fazer. Dificilmente com 'Serenades', o primeiro EP da banda, lançado em 1993, se poderia prever que os Anathema estariam, dez anos depois, a gravar um álbum como 'A Natural Disaster'. O início da banda dos irmãos Cavanagh está no doom-metal, ainda com Darren White como vocalista. Quando este abandona o projecto, os Anathema desviam-se cada vez mais no sentido de um rock progressivo que se vai tornando mais polido e complexo, definido por mutações constantes que, conquanto sejam por vezes arriscadas (e o mais recente 'Distant Satellites' é prova disso), também têm afirmado a banda como um projecto verdadeiramente amplo e variado. Os Anathema parecem ter-se deparado com a adversidade de começar a trabalhar a partir de um extremo. A transfiguração parece ter sido a saída mais inteligente para a banda. 
Os Anathema podem não ser a banda mais comum de referir para músicos que fazem percursos de alguma forma semelhantes (os Opeth seriam uma referência mais usual), mas, perante precisamente alguns projectos mais recentes, percebemos que os Anathema permitiram a uma série de músicos uma aprendizagem sobre como resolver criativamente o problema de se ficar preso num extremo do espectro musical e emocional.



É de certa forma o caso dos finlandeses The Chant. O colectivo formado por Ilpo Paasela (voz), Jussi Hämäläinen (voz, guitarra), Mari Jämbäck (piano e teclados), Kimmo Tukiainen (guitarra), Markus Forsström (baixo), Roope Siven (bateria) e Pekka Loponen (voz, guitarra) lançou em 2008 o primeiro EP, 'Ghostlines' e, desde então, três álbuns: 'This is the world we know' (2010), 'A Healing place' (2012) e 'New Haven' (2014).
É verdade que no EP ouvimos pouco mais que uma banda a experimentar(-se), mas nos dois anos que passaram até ao primeiro álbum, os The Chant parecem ter encontrado um terreno sólido para se expressarem. A capa de 'This is the world we know' talvez explique exactamente aquilo que esse álbum parece representar: um rapaz pendurado numa vedação olha fixamente para um ponto que está fora do campo de visão. Esse encontrar de alguma coisa definida é o que marca a diferença entre 'Ghostlines' e 'This is the world we know'. A música dos The Chant, e particularmente nos seus melhores momentos (Armoured man, November 1983, Will you follow, Safe world, Reflected) tinha uma solidez definitiva, havia nela algo de muito negro e muito pesado, contraposto por uma espécie de aproximação de uma redenção (dizia-se na letra de Will you follow: treasure is the light bearer/ speaking without words to me,/ now is the moment for courage) . Essa solidez não passava ao lado de algumas lições tiradas de bandas como os A Perfect Circle, os Katatonia e da fase 'Alternative 4' – 'Judgement' dos Anathema.
O problema com 'This is the world we know' era no entanto o extremo a que parecia ir, dentro daquilo que era o seu universo. O que era angustiado e sem esperança no primeiro álbum teve então necessidade de efectivamente dar esse passo em direcção à redenção prometida. E é isso que marca o segundo álbum, 'A healing place'. O título é, aliás, auto-explicativo. As canções eram, até certo ponto, mais directas e mais intensas ao encarar uma espécie de mundo doente (Outlines, Riverbed, The black corner), mas que passava também por uma espécie de compreensão profunda desse mesmo mundo. Adoecer e convalescer: eis o que acontecia do primeiro para o segundo álbum dos The Chant. A esperança vinha desse estado em que a doença ainda está presente mas prestes a desaparecer. As composições melódicas e meditativas, que desenvolviam aquilo que no primeiro álbum era mais prototípico, reforçavam precisamente essa ideia. 'A healing place' tinha mesmo alguma coisa de terapêutico e de fascinante, mesmo quando soava mais desesperante (o caso de Outlines sendo o mais extremo de todos).



Com o terceiro álbum, os The Chant parecem ter chegado à possibilidade de sintetizar as duas vertentes que experimentara primeiro em separado. 'New haven', lançado há pouco mais de um mês, é uma espécie de fusão entre o rock pesado e cabisbaixo de 'This is the world we know' e o lado mais experimental e intimista de 'A healing place'. Mas 'New haven' é realmente qualquer coisa nova para os The Chant. É uma conquista talvez daquilo que nos álbuns anteriores era mais embrionário. A concentração num esquema instrumental mais complexo e pausado, com canções longas e imprevisíveis, leva-os num sentido mais sinfónico sem recurso a orquestra que as letras de Ilpo Paasela e Maari Jämback integram de uma forma quase orgânica. Mas mais do que nunca, 'New haven' situa os The Chant no campo do atmospheric rock, com bastante segurança (uma vez que facilmente neste subgénero encontramos propostas que resvalam para o lamechas). O imaginário que sugerem em canções como Drifter, Come to pass, Cloud Symmetry ou Earthen são dificilmente imediatos, pelo contrário, apresentam uma estranheza que nos exige tempo e um certo investimento emotivo para verdadeiramente sermos capazes de os compreender. É também um conjunto de canções (particularmente Earthen, Playwright e Come to pass) um tanto cinematográficas. Há um ambiente muito nórdico e glacial que se cria nos longos solos sem voz. Quando a voz intervém, parece em diálogo consigo mesma. Pergunta-se, responde-se, engana-se e desengana-se. Discretamente, os The Chant criaram uma espécie de pequena tragédia íntima, um progresso pessoal num mundo desviado daquilo que dele se esperava. 


Também influenciados pelo metal e por uma tendência para o atmospheric rock são os belgas Steak Number Eight (SN8), banda originária de Wevelgem, formada por Brent Vanneste (voz, guitarra), Joris Casier (bateria), Jesse Surmont (baixo) e Cis Deman (guitarra), que lançou já os álbuns 'When the candle dies out...' (2008), 'All is chaos' (2011) e o mais recente 'The hutch' (2013).
Desde o primeiro álbum, é notória a intenção de canalizar a brutalidade e a atmosfera apocalíptica do black metal para um registo que ficasse a meio caminho para o rock industrial. As influências dos Mastodon, dos Cult of Luna, dos Dimmu Borgir ou das primeiras experiências de Trent Reznor são assim contrabalançadas por uma melancolia tensa que é herdada da fase de transição dos Anathema ('The Silent Enigma' de 1995, particularmente) ou ainda da influência mais estrutural dos Slayer ou dos Iron Maiden.
No essencial, no entanto, aquilo que os SN8 fazem está distanciado do metal tanto quanto do rock. Esse meio-caminho é o que lhes permite a flexibilidade que caracteriza a sua música: conquanto uniforme, ela oscila frequentemente entre a atmosfera mais pesada e psicadélica e a deriva quase improvisada mais sentimental e comovente. O trabalho dos SN8, e particularmente o seu álbum inicial, dá ênfase efectiva à forma, por assim dizer: as composições são de tal forma exacerbadas que têm qualquer coisa de wagneriano, de profundamente trágico, que poderá passar despercebido devido à tendência para o descontrolo e para a brutalidade. Em canções como The holy truth, Falling out of a dream ou no imponente The sea is dying, esta dimensão trágica e violenta é bastante notória, e ela representa, de resto, aquilo que de melhor existe na música dos SN8.
No entanto, a edição de 'All is chaos' parece ter sido um exercício de radicalização por parte dos SN8. Aquilo que se encontrava diluído e sintetizado em 'When the candle dies out...' surge aqui nitidamente separado. As canções assumem praticamente todas um cariz mais directo e contundente, baseado numa estrutura de repetições e pausas que, apesar de representar uma regressão em comparação ao álbum anterior, não deixa de proporcionar os seus momentos intensos, como acontece com The calling, Blackfall ou Man vs. Man. Ao longo do álbum, no entanto, vão surgindo alguns momentos que, dir-se-ia que intencionalmente, funcionam como interrupções, canções como Trapped, Stargazing ou Track into the sky, que se distinguem claramente das outras por uma aproximação ao lado mais directamente melódico e poético. O que parece acontecer entre os dois álbuns é que, onde o primeiro era extremamente bem sucedido ao diluir duas vertentes quase diametralmente opostas na mesma canção, o segundo se esforça por separar essas vertentes, assumindo-as com morfologias diferentes e com um desequilíbrio propositado: os momentos mais contemplativos acabam sempre por, a dado momento, resvalar para o lado mais violento e apocalíptico. Ainda que 'All is chaos' esteja longe de soar como um projecto falhado (contém, é preciso dizê-lo, algumas das melhores canções que a banda já produziu), é também verdade que ele causa uma certa estranheza ao recuar na síntese perfeita e estranha que 'When the candle dies out...' representava.



Até certo ponto, talvez a própria banda tenha tido consciência disso. 'The Hutch' é o seu trabalho mais complexo e mais conseguido até à data. Há neste terceiro trabalho dos SN8 um lado experimental muito acentuado, que passa também pela inclusão de uma electrónica discreta, e ainda por uma completa liberdade a um nível estrutural. As canções parecem, logo desde a primeira, Cryogenius, não ser propriamente canções, mas peças, com variantes, pormenores e afluentes, que transformam cada faixa num pequeno conjunto de elementos que, somados, resultam numa estranheza muitíssimo conseguida. É um regresso à síntese entre o lado mais barroco e emocional e a componente metal mais do que assumida. A matriz parece, paradoxalmente, vir dos Mastodon e dos Katatonia, ou particularmente dos álbuns mais recentes dos primeiros e dos mais antigos dos segundos. Mas o resultado é denso e pessoal. Mais do que nunca, os SN8 parecem ter ganho uma identidade, um caminho definido. A expressão da raiva e do descontrolo conhece com esta banda uma densidade convincente, que soa muitíssimo madura. Quem esperar uma raivinha adolescente, não vai encontrá-la aqui. Quem grita nestas canções parece ter acumulado durante anos a vontade de o fazer.



Uma proposta também concentrada no potencial emotivo e melódico do rock pesado surge-nos com os suíços Last Leaf Down (LLD). O colectivo formado por Benjamin Schenk (voz e guitarra), Danny Bruno Dorn (baixo), Sascha Jeger (guitarra) e Patrick Hof (bateria) lançou, desde 2012 vários singles: 'Disengage' (2012), 'In dreams' (2012), 'Truth is a liar' (2012), 'Fake lights in the sky' (2013) e 'The thought that I saw you' (2013). O álbum de estreia, 'Fake lights', lançado recentemente, reúne estas e outras canções.
De todas as bandas que este texto refere, os LLD são a que menos trabalho tem apresentado. No entanto, há uma solidez no trabalho que mostram até agora que faz prever um pouco mais do que uma mera promessa. Dizer que, na sua fusão entre rock, metal e a ''escola'' britânica do shoegaze, os LLD são influenciados pelos My Bloody Valentine, por algum do trabalho dos Cocteau Twins e por, principalmente, os Anathema e os Katatonia, será dizer parte da verdade. Conquanto estas influências sejam assumidas e reconhecíveis, há na forma como os LLD interpretam estas influências qualquer coisa que é diferente. Das suas influências, os LLD aprenderam o poder da beleza, a forma de criar atmosferas, a articulação entre o agressivo e o comovente. Mas há neles qualquer coisa de glacial e de etéreo, de quase fantasioso. Mas é uma fantasia até certo ponto distópica. Em todas as canções lançadas desde 2012, há uma angústia densa, uma incursão quase fenomenológica por reinos desencantados. Talvez essa ambiência tenha que ver com o clima de um país do norte da Europa, como a Suíça. Na música dos LLD parece haver neve, tudo nela recria um ambiente solitário, isolado, parado mas profundamente vivo, no sentido em que há uma tristeza vibrante que é sugerida por essas sensações de distância em relação ao mundo.
Esta energia contemplativa e depressiva faz-se sentir com especial intensidade no mais recente The thought that I saw you, uma invulgar canção de amor, cuja letra procura, nos elementos mortos e frios da natureza, uma espécie de transcendência do fiasco amoroso. Esta canção retoma aquilo que acontecia já no inicial Disengage, uma canção um pouco mais áspera, mas que era já eficaz, particularmente pela capacidade de estruturar uma série de momentos díspares (solos de guitarra eléctrica, por exemplo) numa mesma canção que, de uma forma um tanto barroca, parecia ser a assimilação de várias canções.


Em Born dead há até uma certa influência da música medieval (não é difícil recordar Hildegard Von Bingen, outra compositora vinda do frio), que se coaduna de uma forma surpreendentemente perfeita com a atmosfera da música dos LLD.
Outra canção que importa referir é In dreams, eventualmente aquela onde as referências da banda são mais audíveis, mas onde surgem, igualmente, sintetizadas de uma forma mais conseguida. Aqui, parece haver a presença fantasmática de uma sonoridade mais urbana, mas mesmo essa não soa a mais do que uma reminiscência longínqua.
E é isso que faz dos LLD, mesmo antes da publicação do álbum de estreia, um projecto interessante. A sua música parece operar no campo da imagem (e os videoclips simples e quase abstractos remetem-nos para isso mesmo), como se o som tivesse um qualquer poder cinestésico. É nesse sentido que toda a sua música chega a parecer scy-fy, no sentido em que nos coloca na própria aniquilação do mundo construído, e nos conduz a uma espécie de tempo pós-futuro, em que sobra apenas o vazio deixado pela civilização. A memória do mundo construído assombra as composições, mas é sobre o vazio que ficou que elas se debruçam de forma mais concreta. Assim, ficamos perante uma emotividade desfeita, comovida e saudosa mas parca em esperança. A sua beleza resulta de um olhar sobre a morte, o abandono e o fiasco, mitificados e embelezados porque são tudo aquilo que sobrou. A música dos LLD é profundamente imaginativa. O que nela soa familiar parece uma reminiscência do futuro, mais do que uma memória nostálgica. 

(Parte 3: ler aqui

domingo, 1 de março de 2015

Cinco bandas novas (Parte 1)


Quem olhar profundamente para dentro de si mesmo, trará de volta uma canção que vai soar a qualquer coisa como rock.
Apesar de votado a uma espécie de ignorância propositada por parte da ilustre elite dos auto-proclamados intelectuais,  a um nível geral o rock não é senão um dos herdeiros mais directos da música barroca. Na sua estética repetitiva, exacerbada e do explosiva, a música barroca tomava as emoções humanas e trabalhava sobre elas de uma forma sufocante e carnal, erótica e violenta. Ao contrário da música romântica, exaltadora da beleza, a música barroca nem sempre é bela, pode ser tortuosa e inusitada, chega nalguns casos a ser aborrecida (por efeito de repetições e recomeços contínuos): mas em tudo isto mantém uma extrema verosimilhança para com a verdadeira natureza dos sentimentos e da vida. Como o rock, a música barroca é feita de vísceras e agonia.
A influência da música barroca no metal está apesar de tudo acertada: passa ao lado de muitos dos que ouvem, por efeito da forma mais do que do conteúdo, mas está lá. Em muitos aspectos, se resumirmos as características essenciais bandas de rock, encontraremos muito da música barroca: uma tensão pressentida entre o indivíduo e o mundo (que era subreptícia na música barroca e é clara no rock), uma sinceridade desarmante perante os sentimentos (que passava pela música no século XVIII e que se estende muitas vezes à letra no rock) e a busca declarada por aquilo que é dissonante, estranho, perturbante. A sensibilidade barroca, como a do rock, é uma procura do extremo e do excesso, é uma expiação. A ideia de harmonia e regularidade que caracterizava não só a música mas toda a Arte do primeiro neoclássico foi abandonada pela emotividade efusiva dos compositores barrocos. A estética do deslumbramento e da sedução que a Contra-Reforma transmitiu às artes visuais e particularmente à Arquitectura tiveram também reflexo na música. Tendo em conta os valores antropocêntricos e racionais do Renascimento, a atitude barroca é paradoxal: conquanto articulada com o poder religioso, representa uma ruptura cronológica, uma reacção às características estruturantes do Renascimento.
Essa insubmissão, essa busca do diferente e da individualidade, seria retomada em força pelo Romântico em moldes diferentes, mais preocupados com o que era belo e comovente (e deixando de lado a agressividade e a aspereza que se faziam sentir nalgumas composições barrocas). O rock sintentiza estas duas tendências de uma mesma atitude. É romântico pela rebeldia, mas frenético como o Barroco.
Só uma profunda incompreensão (ou, para dizer de uma forma mais clara: uma atitude reacionária e um nadinha ignorante) mantém os ouvintes ''sérios'' e ''cultos'' longe do rock e das suas propostas.

Há, para sermos breves, dois problemas essenciais quando falamos de como o rock é apreciado. Um prende-se com a falta de um trabalho crítico sério*: conquanto isto garanta uma posição de certa forma marginal aos músicos, também resulta numa profunda ignorância quanto ao género ou à cultura. O outro é o da apreciação dos ouvintes, onde convergem uma série de ideologias quanto à sociedade, aos sistemas políticos e económicos e mesmo em relação à própria música e ao cenário desconexo que parece ser o actual.
Ambos os factores não deixam de parecer compreensíveis. A sinceridade e a crueza que caracterizam o rock podem ser, até certo ponto, incompatíveis com um estudo como o que encontramos nas Ciências Humanas (e que contaminam de certa forma o trabalho dos críticos culturais) pois não deixa de ser uma cultura que só pode ser conhecida de dentro e que não pode ser sujeita a determinadas metodologias, sob risco de se perder a ligação com a realidade. Por outro lado, o rock traça a nossa ligação com aquilo que de menos ''civilizado'' temos em nós. O rock, com as suas guitarras eléctricas, com as suas vozes gritadas e a sua sonoridade agressiva (mesmo que melancólica), com a sua expressão descarnada e a sua paixão pelo ruidoso apresenta algo que é diametralmente oposto ao que entendemos como pop. Onde o pop é um glamour e um imaginário sedutor e leve (mesmo nos seus momentos tristes), o rock apresenta-se como uma espécie de glamour decadente, de energia invertida. Onde o pop valoriza a celebração, o rock apresenta a depressão e a violência. Onde o pop marca a luta do indivíduo pela sua afirmação, o rock lamenta a impossibilidade dessa afirmação. Onde o pop é cântico de vitória, o rock é uma elegia da derrota**. Ora, se sabemos que o pop é, por definição, aquele que move milhões de ouvintes, será porque, à partida, esse modelo soa mais aceitável à maioria. Posto isto, não é de todo incompreensível que, quando uma banda vende mais, se torna ''comercial'', os ouvintes originais se sintam defraudados: os músicos que admiravam parecem defender posteriormente valores incompatíveis com os iniciais.
É frequente que os ouvintes de rock se prendam aos grandes clássicos. Esta é uma postura que devemos, no entanto, evitar. O olhar profundo para o interior das coisas não deixa de pressupor uma relação com tempo. Muitas das angústias pessoais que sentimos nascem de uma cisão com aquilo que nos rodeia e que vai mudando de acordo com o tempo em que estamos. Pode ser verdade que nunca mais se fará um álbum como 'Ten' dos Pearl Jam. Mas também já não estamos em 1991. E ainda que muitas das pesquisas estruturais permaneçam as mesmas, é preciso saber continuar.

Aqui ficam alguns (breves) comentários sobre algumas bandas recentes, as seguintes:


Parte 2 (aqui)

The Chant (Finlândia)
Steak Number Eight (Bélgica)
Last Leaf Down (Suíça)

Parte 3 (aqui)

The Black Box Revelation (Bélgica)
Ash is a Robot (Portugal)

Parte 4 (aqui)


___________________________________
*Refiro-me a trabalho crítico académico, ou mesmo a uma crítica mais ampla levada a cabo em trâmites diferentes dos das revistas especializadas. Basta pensar que nenhum crítico cultural de peso se debruçou com seriedade e profundidade sobre o rock. O exemplo de Susan Sontag é ilustrativo disto mesmo: a crítica que tornou possível falar de cultura popular a par com cultura erudita podia ir a um concerto dos Pearl Jam, mas não sentiria necessidade de escrever sobre eles (vd. https://www.youtube.com/watch?v=7GRx3KgKauY). Camille Paglia incluiu no seu ''Sex, art and american culture'' (1991) um artigo sobre o rock como arte, sério e interessante, mas que peca por ser breve.

** Assinale-se, para ambos os casos, que existem excepções. O pop de Lana Del Rey é dificilmente uma celebração e o rock de algumas bandas mais adolescentes (rock ainda assim) como os Guano Apes ou os Korn não passa necessariamente por um aprofundamento do que é triste ou depressivo.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Anathema: Distant satellites



Do álbum 'Distant Satellites' (2014)
Letra de Daniel Cavanagh


(...)
And it makes me wanna cry
Caught you as I floated by
And it makes me wanna cry
We're just distant satellites
(...)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

sobre Luísa Dacosta, no seu 88º aniversário

Há seis anos, eu estava a mudar-me para Lisboa. Vivi o primeiro ano num quarto pequeno ao Bairro Alto, que não tinha grandes vantagens, mas deixava-me próximo pelo menos da Baixa, e das livrarias, que foram sempre um dos meus paraísos. Aos sábados, o que acontece ainda hoje, fazia-se na Rua Anchieta uma feira, com bancas de livros, desde os mais raros (e caros) até outros a preços de ocasião. Foi nesse primeiro ano em Lisboa e nessa feira na Rua Anchieta, que encontrei o primeiro Diário de Luísa Dacosta, a um preço bastante reduzido. Foram essas as duas razões que me levaram a comprá-lo: era barato e era um Diário, um género que aprecio bastante mas que raro é escrito (ou publicado) em Portugal. Conhecia vagamente o nome de Luísa Dacosta, é possível que de alguma antologia, mas não posso estar certo.
Devo ter demorado duas semanas a ler o livro, apesar de ser bastante extenso. Hoje, penso que nada de estranho há nisso. «Na água do tempo», assim se chama esse primeiro de dois Diários, apaixonou-me imediatamente por Luísa Dacosta. Imediatamente e sem retorno. Nos anos seguintes, de alfarrabista em alfarrabista, fui procurando os seus livros, que lia e relia, com a voracidade que só podemos dedicar aos livros em que a palavra vai além de si mesma. Mesmo nesse Diário, impressiona como o fragmento tão pequeno de texto consegue vibrar de forma tão intensa e perpetuar-se, como se lêssemos os pequenos textos de Luísa e eles fossem continuar, sozinhos, quando fechamos o livro e prosseguimos o nosso quotidiano prosaico, o mesmo quotidiano prosaico que, tantas vezes, é mesmo o tema dos textos de Luísa. 


O mesmo se passa com os restantes livros, quase sempre de géneros ditos menores: contos, crónicas, romances fragmentários, novelas curtas. O mundo de Luísa Dacosta não é realista, é real, os seus dramas, estruturalmente guiados pelas grandes tragédias, só são possíveis porque é no real que acontecem, porque cada frase é talhada a partir da matéria tosca do dia-a-dia, do confronto violentíssimo entre uma vida interior desejosa de libertação e de claridade e um lugar onde só florescem a solidão, o isolamento, a tristeza, as saudades de uma infância perdida. É assim com os seus livros sobre as grandes cidades, «Vovó Ana, Bisavó Filomena e eu» (1969) sobre Lisboa, e «Corpo Recusado» (1985) sobre o Porto. Noutro campo estão o inicial «Província» (1955) em que a cidade de Vila Real é palco de uma vida anónima e simples em que o drama encontra saída numa extrema capacidade de contentamento; ou então as crónicas de «A-Ver-o-Mar» (1980) e «Morrer a Ocidente» (1991), em que a vila piscatória de A-Ver-o-Mar, cenário tão análogo à interior Vila Real, se afirma como uma espécie de retorno ao Éden, uma libertação derradeira, um lugar de felicidade idílica que nem por isso está livre da brutalidade e da miséria.
Luísa Dacosta, dir-se-á, é uma ficcionsta. O que não é um demérito, porque muitos dos grandes escritores, por todo o mundo, são ficcionistas. No entanto, desde esse «Na água do tempo» (que inclui, também, algumas pequenas ficções), nunca consegui ver Luísa Dacosta como uma ficcionista. Nalguns momentos, pareceu-me uma arguta etnóloga, observadora e crua, olhando com dureza mas nunca com arrogância, para os pescadores de A-Ver-o-Mar e para as mulheres desses pescadores, ou para as mulheres tão sós de Lisboa no livro de 1969. Noutros momentos, Luísa pareceu-me uma eterna diarista, como não deixou de o ser a grande Irene Lisboa. Noutros momentos ainda, a densidade da experiência humana de que os seus escritos dão conta, fazem Luísa parecer uma espécie de mística laica: nela, a experiência da própria humanidade é uma forma de transcendência, de união com um mundo que pode não ser o melhor, mas é o que existe, pelo que só amando-o é possível sobreviver. A sua escrita é intensa e fulgurante por causa dessa transcendência, e é por isso que em todos os momentos, Luísa Dacosta me pareceu sempre uma poeta. A pequena edição de «A maresia e o sargaço dos dias», que, em 2002, reuniu alguns fragmentos poéticos em livro, não foi mais do que uma confirmação. A poesia era a força que soprava em todos os escritos de Luísa. A sua tendência para o fragmento, para o apontamento, para a imagem bruta e impressiva, não eram senão a intromissão da poesia naquilo que, afinal, somos precipitados ao classificar como prosa.
É raro o autor em que encontramos um mundo tão terrível como o de Luísa Dacosta. Morte, solidão, violência, perda, ausências, sofrimentos atrozes: disto nos dão conta os seus escritos. Ler Luísa Dacosta é conhecer de forma desarmante um mundo em que só é possível sofrer. A escrita parece ser, muitas vezes, uma possibilidade aberta por esse sofrimento: a possibilidade de sonhar. Luísa é uma autora da palavra, da consciência da palavra e do seu poder. De certa forma, continua a pesquisa aberta por Irene Lisboa, Agustina Bessa-Luís, Torga ou José Gomes Ferreira e continuada por Maria Velho da Costa, Regina Guimarães ou Hélia Correia: a fusão de uma linguagem popular com uma linguagem erudita e poética. Luísa é um dos casos em que essa pesquisa se torna mais relevante e mais natural. O espaço aberto pela separação entre estas duas linguagens é perceptível mas insignificante: sempre o texto parece natural, fluido, perfeito. Este apuramento da linguagem escrita é, em Luísa Dacosta, como a planificação de uma viagem, a escolha do itinerário mais agradável: só pelo sonho podemos salvar-nos do sofrimento, e só pela escrita poderemos sonhar. Não admira, então, que a escrita seja cuidadosamente trabalhada, aperfeiçoada. Aperfeiçoada ao ponto em que não é minimizada por marcas de época. Estas, como Adolf Loos tão bem viu, são quase sempre fruto do artifício. Em Luísa Dacosta, nada é artifício, tudo é incrivelmente real e necessário. O tempo não pesará muito sobre ela, o que nos diz será reconhecível por muitos e longos anos. É reconhecível agora, mesmo que nos pareça que tudo mudou tanto nos últimos cinquenta anos.



Uma das fotografias mais conhecidas de Luísa foi tirada pela fotógrafa Graça Sarsfield para a antologia «Vozes e olhares no feminino», publicada pelo Porto 2001: Capital Europeia da Cultura. Luísa sorri abertamente. Tem um riso sincero de menina. Em todas as fotografias que conheço dela tem esse riso de menina. Incluindo naquela que se encontra na contracapa de «Na água do tempo». A pergunta que me fiz, nessa altura, não foi como pode alguém que tem este sorriso escrever estes textos?, mas sim, como pode alguém que escreve estes textos ter este sorriso?
Num regresso ao Porto, em 2010, conheci Luísa Dacosta. O mesmo riso de menina, aberto e bem-disposto. Falou-me da Maria de Maria Vai, Maria Vem, Romance de mulher-a-dias, um conto de 1969. E falou-me de um terceiro Diário que pretendia publicar, o que não chegou a acontecer. Perguntei-lhe qual seria o título, e arrependi-me: poderia ser uma indiscrição. Mas não. Respondeu-me imediatamente que seria «Os dias sem amanhã». E acrescentou: Eu sei que é um título pouco optimista, mas eu acho que não se pode ser optimista neste mundo em que vivemos.
Tinha toda a razão. E tinha toda uma obra que atestava essa crença que partilhávamos. Mas Luísa sorria. Hoje, eu penso que esse sorriso vinha da escrita: de uma escrita de tal forma densa que permitiu a Luísa sonhar, sonhar sempre, mesmo quando sabia que os dias eram sem amanhã.
Emil Cioran, um dos meus filósofos predilectos, tinha a ideia de que só pensamos contra nós mesmos, de que tudo aquilo que fazemos acaba por reverter contra nós, por pesar ainda mais sobre a nossa já imensa miséria. Com Luísa Dacosta, aprende-se a abrir fendas neste ciclo destrutivo que Cioran aponta, e a preencher essas quebras com a matéria luminosa duma palavra que permita ultrapassar a realidade em direcção ao sonho: um sonho que, de resto, não pede o impossível. O sonho de Luísa Dacosta é sempre feito da versão melhor do possível.

Luísa Dacosta deixou-nos na noite de 15 de Fevereiro de 2015, um dia antes do seu 88º aniversário. Morre assim um dos grandes escritores ignorados da literatura portuguesa. Quando um escritor morre, o seu leitor pode sempre ser mais optimista do que aqueles que o conheceram. Conheci Luísa Dacosta, não fomos exactamente amigos, tínhamos uma relação essencialmente epistolar. Hoje, no entanto, escolho ser um leitor, para poder dizer que Luísa Dacosta não nos deixou, que os seus livros continuam na estante, que continuo a relê-los, que continuam a fazer-me interromper a sina terrível descrita por Cioran. E principalmente, que em cada texto, no meio do espectáculo trágico da vida, haverá sempre um frase que tornará possível que se sorria, sem reservas, face a tudo.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Luísa Dacosta, 1927-2015


«Que longo dia para a minha tristeza! Longe é onde há vozes, chamamentos, passos, acenos de adeus. Aqui o silêncio é um túmulo aberto que me força a olhar a inutilidade da luz.»

(Luísa Dacosta, Na água do tempo, 1991)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Tene me (fragmento)


Aconteceu-me ver matéria aflita,
Águas de um rio levando os afogados
Compadecidamente.
Com as mãos nos seus fundos, oscilando,
Passando os corpos umas para as outras,
Desfolhando-os aos poucos,
De maneira
Que aquilo que atinge finalmente o mar
Nada recorda já. Águas que
Despem a dor aos mortos,
Que passeiam
A sua lividez como uma flor.
Vi, com meus olhos, os desfiladeiros
onde despenham os executados,
abrirem gentilmente a sua cova
de areia e de erva,
para que nele repousem
a estoirada cabeça. O chão ondula,
e a sua piedade
tão desumana
acolhe-os como um berço.
Vi, que sei eu? a lâmina afastar-se
do pequeno cabrito.
Crias houve
que mamaram das pedras, separadas
que se acharam das mães por caçadores.

Hélia Correia
Apodera-te de mim
2002, ed. Black Sun
fotografia de Polly Borland

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Encontro


Não sou uma metáfora
de silêncio
mas sim a voz do nosso encontro:
o falo
impiedoso
cujo timbre,
como o de todos os mansos,
quase todos os ternos,
me excita
até ao crime.
Talvez esteja aí a tua submissão e o meu
despotismo,
escrita minha!
Não nos censuro.
Pelo contrário, acho que nos completamos.
Belo encontro!
Belo encontro! _ O magnetismo,
a pele, o meu gingar
de marinheiro e caravela masculina
e a tua vulva cega
e discursiva!
Onde aprendi as calças metálicas,
justas nas coxas,
os seios cortantes?
Pois. Num verso. Numa métrica sem rima.
Porquê, então, o espanto?
Todos os poetas são radicais e orgânicos,
sobretudo se interessados
no sexo.
Por isso não te quero obediente,
meiga
e desvitalizada,
tagarela
e insípida,
folheando uma revista inócua
e não te passando sequer pela cabeça o não seres
capaz de tomar uma resolução importante,
tal como a de, por exemplo, mudar uma torneira
ou viajar sozinha em busca
de um harém
suave.
Porque deveria, então, sentir-me
desapontada contigo?
Somos tão parecidos! _ dizes.
Claro: o mesmo arrojo, o mesmo minucioso
cuidado no penetrar
e sem traição
e sem perfídia,
a portuguesa
língua.

Eduarda Chiote
Não me morras
2004, ed. &etc
imagem: Marlene Dumas

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Armas brancas


11
Entre cantares (solitários, do povo)
e discursos exacerbados de políticos
a terra trabalha o seu fermento
lêveda ainda das bocas
colectivas.
Cada semana absorve-te e resolve-se
nas marés vivas dum corpo facetado.
A economia é um pilar estilístico.
Os homens de teatro imitam os tribunos
e as noções de equipamento
estendem-se à arte dos trágicos.
O sexo, dizes, não se determina.
Antes de senso
Visconti declarou
a terra toda que trabalha
treme.
Pasolini foi assassinado pelos seus próprios
mitos.
Não era tempo ainda da mão solidária
figurar entre os ciclones da Roda que desanda
inexoravelmente
sobre o campo dos mártires sem causa.
Virgens de uma razão alucinada
os seus heróis dançavam por entre uma flora
incandescente a meio termo do néon
a um passo da vida pitoresca.
As telas de cinema só se compadecem
com a maquinaria hirsuta e caricatural
dos enormes charutos do academismo
e das cosmopolitas capitais do Falo.
Esse jogo, jogava camuflado.
Nos seus trabalhos diários, a terra
continua a tremer por cima dos seus órfãos.
Proletários do sexo e de todo o mundo
uni-vos.

Armando Silva Carvalho
Armas brancas
1977, ed. Limiar
imagem: James Ensor

sábado, 17 de janeiro de 2015

Sobre o vídeo de "Elastic heart"


Sia Furler, cujo percurso começa no final dos anos 90, e esteve ligada Zero7, só conheceu sucesso a sério depois de participar um tanto inesperadamente nalgumas canções de David Guetta. O álbum mais recente, "1000 forms of fear", longe de ser a sua melhor produção, é sem dúvida o mais badalado, com o primeiro single, Chandelier a tocar irritantemente em tudo o que é bar, café, loja, discoteca, etc.
Elastic Heart, o single mais recente, não é muito melhor, mas apresenta algo decurioso: o videoclip, à volta do qual se criou uma enorme polémica, com direito a acusações de incitamento à pedofilia, o que levou Sia a justificar-se e desculpar-se, o que me parece despropositado, pelo menos na segunda parte.
Não há nada de pedófilo no vídeo de Elastic Heart, realizado pela própria Sia e por Daniel Askill. Pelo contrário. Um acto de pedofilia pressupõe um mínimo de duas pessoas. E, na verdade, este vídeo tem factualmente dois corpos, mas apenas uma pessoa. Trata-se de uma das melhores peças recentes no campo do videoclip e a sua observação deve orientar-se, penso, pelo valor artístico e videográfico, e não pela paranóia excessiva dos nossos tempos tão pós-modernos, em que limpamos com lixívia pura qualquer indício de sexualidade, enquanto nos indignamos porque, durante séculos, a religião reprimiu o sexo. As contradições!
O vídeo de Elastic Heart só é erótico se o olharmos de forma muito desantenta. Pelo contrário, o impulso que anima este vídeo prende-se mais com a violência do que com o erotismo.
Maddie Ziegler e Shia LaBeouf interpretam, no fundo, a mesma personagem, vista apenas de pontos-de-vista diferentes, que não são apenas dois mas, quanto a mim, quatro.
A interpretação mais imediata do vídeo (excluindo a da pedofilia, que não tem sentido algum) é a de que LaBeouf nos apresenta o indivíduo adulto e civilizado, enquanto Ziegler é a criança, ainda livre, em estado quase selvagem. O espaço da gaiola, que se torna uma arena para o confronto entre estes dois lados de um mesmo ser humano, representaria, desse ponto de vista, a consciência do indivíduo ou, indo mais longe, o super-ego freudiano, a voz da punição que força o ego a obedecer a convenções, socializações e comportamentos normativos e que, principalmente, pune a fuga a estes. Vários momentos do vídeo sustentam esta ideia, inclusivamente a capacidade que Maddie Ziegler tem, mas Shia LaBeouf não, de passar entre as grades da gaiola e sair: só uma criança consegue atravessar as barreiras da estruturação imposta a um adulto, porque, nela, o super-ego não está formado, mas em formação. Assim, não é de admirar o contraste nas coreografias de Ryan Heffington. Enquanto a de Ziegler é animalesca e atacante, a dele é uma defesa contida e impotente apesar de pujante.
Mas o confronto pode ser outro. Representar apenas a luta entre a idade adulta e a infância de uma mesma pessoa seria até mais evidente se se procurasse uma semelhança entre os dois intérpretes, mas é exactamente isso que não acontece. O que abre espaço para uma tensão paralela: a do masculino e do feminino. A violência do confronto entre a infância e a idade adulta não é menor do que a violência que ocorre quando nos apercebemos de que a nossa energia sexual e mesmo a nossa os limites do nosso sexo/ género não são necessariamente unilaterais. O que este vídeo nos pode oferecer é um retrato da dificuldade de um homem em assumir o seu lado feminino. Isto torna-se mais pungente quando percebemos que, principalmente na figura de Shia LaBeouf, não há nenhum apontamento de androginia. O seu corpo definido, os pelos corporais, a barba, são emblemas de uma masculinidade que não é ameaçada pela existência de um lado feminino. Portanto, este não devia constituir um problema: mas constitui. Ao ponto de despertar nele a necessidade de reafirmação. Para isto, podemos atentar na sequência em que LaBeouf trepa pelas grades da gaiola e, pendurado no centro, ergue o seu próprio corpo como se fizesse musculação. A câmara muda de ponto de vista e mostra-nos que, abaixo dele, Ziegler dança como se fizesse ballet. Usando dois actos tradicionalmente conotados com o masculino e o feminino, o que Elastic Heart nos propõe é que qualquer insistência sobre um não anulará o outro: intensificá-lo-á. O espaço da gaiola recupera assim a ideia de um super-ego que não esquece as convenções: neste caso, as convenções que pesam sobre ser-se homem na sociedade, por exemplo. No entanto, o final do vídeo apresenta um certo sinal de esperança, quando ele a toma aos ombros e começa a caminhar com ela, mesmo que incapaz de sair dos limites da jaula: dos seus próprios limites, afinal.
Seja na oposição criança/adulto, seja na oposição masculino/feminino, o vídeo de Elastic Heart é uma peça de extrema sensibilidade e de uma beleza simples. Quando se desculpou pelo videoclip, Sia explicou que Shia LaBeouf e Maddie Ziegler lhe haviam parecido os dois actores apropriados para fazer este vídeo. Está correcta. De Ziegler, só conheço os vídeos de Sia, mas Shia LaBeouf, um actor estranhamente monosprezado, tem um particular à-vontade para lidar com a problematização do sexo: isso viu-se no vídeo de Fjögur Píanó dos Sigur Rós, mas mais ainda no prodigioso "Nymphomaniac" de Lars Von Trier. Porque LaBeouf já foi capaz de incorporar a androginia no primeiro e o pior drama sexual masculino (a incapacidade de satisfazer aquela/e que desejamos) no segundo, o actor parece ter uma compreensão fluida e plural da sexualidade, e só alguém assim poderia ter feito este vídeo. No resultado final, a tensão entre os dois corpos (e não duas personagens) é credível e intensa e, o que será mais interessante, consegue multiplicar os seus próprios significados e tornar Elastic Heart uma proposta complexa mas imediatamente cativante, como convém a um videoclip.